segunda-feira, maio 14, 2007

Uma Metáfora

De manhã fui ver o mar. Sem ondas. Muito vento. Eu fiquei sem o surf, a mãe sem o livro, Mariachito sem os pezinhos pequeninos, unhinhas minúsculas e da cor da pele, iguais aos da mãe, na água. Parque da Paz, então. Um lago enorme. Um ecossistema no mesmo. À superfície, patos reais, uma fêmea com as crias das restantes, gansos selvagens, dois cisnes, gaivotas. Na margens, além de todos os outros, um tímido marrequinho que vira a crista a favor do vento, tome a direcção que tomar. Em Almada, a designação de Parque da Paz é uma sorte. Seria injusto para uma estrutura desta dimensão (pensada ao milímetro por engenheiros do ambiente e arquitectos paisagistas) um nome como Parque 25 de Abril, Salgueiro Maia ou mesmo Otelo Saraiva de Carvalho, o que, de qualquer forma, já toda a gente esperava. Parque da Paz é que não. Tanto melhor! 60 hectares de pulmão da cidade à humilde dimensão de uma cidade como Almada. Os pinheiros mansos, as azinheiras e os sobreiros já lá estavam. Todas as outras árvores, juncos e arbustos foram plantados. Quer isto dizer que esta zona verde já existia. Só não tinha empedrados, circuitos de manutenção e relvados cuidados para a criançada empersonar o Cristiano Ronaldo. O meu pai andava por ali, em criança, "aos ninhos, aos pássaros e à xinxada". Eu andei por ali de "bicla", uma BMX amarela com punhos e selim azuis. Era com ela que ia à padaria, uma casa em tijolo crú, sem revestimento, numa mata de pinheiro bravo. Era nela que voltava a casa a toda a brida para barrar o paõ a escaldar de manteiga Primor, amarelinha, e vê-la derreter. Era com ela que ia ao leite à vacaria, evitando a roupa vermelha para não "enervar" os touros. Era com ela que ia à rouparia buscar queijinhos frescos das ovelhas que passavam na minha rua, guardadas pelos cães que todos os dias me vinham pedir festas (e uma bolacha maria). Foi com ela que percorri Sobreda, Charneca, Alto do Índio, vastas florestas com vista para a Ponte. Andava "aos ouriços", que enquanto crias têm nos espinhos meros pêlos, só para tirá-los da toca e fazer-lhes festas. Andava às cobras e lagartos para meter medo às miúdas. Aos pirilampos para fechar em frascos, levar para o jardim dos meus pais e ficar a noite toda, depois do "V, a Batalha Final", a contemplá-los da janela. Os entardeceres a jogar à bola no centro de uma nuvem de escaravelhos-rinoceronte, os concursos de tamanho de bolas de âmbar encontrado nos damasqueiros, o bate-pé debaixo das figueiras, a corrida às formigas-de-asa nas chuvas de Maio, as amoreiras secretas que resistiam à pilhagem de folhas para os bichos-da-seda, as fugas aos pastores alemães dos caseiros das quintas onde hoje se ergue o Forum Almada. O Tejo já foi uma fronteira mais vincada. Mas nesse tempo, em que a Margem Sul era uma floresta com esparsas manchas habitacionais e sofria do isolamento que isso ditava, Lisboa era também muito menos cosmopolita. Era mais um conjunto de bairros típicos e autênticos e menos esta congregação de trabalhadores dos subúrbios que vão ali trabalhar durante a semana e divertir-se à 5ª, 6ª e Sábado. E, já agora, os bairros típicos tinham lisboetas típicos.
O Parque da Paz é, então, uma pequena amostra daquilo que já foi a Margem Sul. É a Margem Sul possível. E aquele lago uma metáfora. Não foi com pouco choque que vi as pessoas a mandarem pão e bolachas para a água, para aparecer um imenso cardume de percas que o fazia desaparecer muito antes dos patos conseguirem ingeri-lo, os cisnes a atacar os peixes, as gaivotas à espera de uma distracção destes e um velhote, ao meu lado, a exclamar, perante a minha mais que certa expressão de terror: "Tá a ver ali os patinhos a nadar ao lado da pata? Já não é a primeira vez que vejo um desaparecer na boca de uma perca. Este lago não é um lago. É um inferno para esta bicharada".

7 comentários:

Zorze Zorzinelis disse...

Muito bonito o texto, mesmo muito bonito - gostei muito de o ler!

Anónimo disse...

Gostaste de o ler, mas tiveste que fazer pausa para as três refeições do dia?

Anónimo disse...

Foi o testemunho do nosso ouvinte de Cheleiros Sur Mer. Passamos já de seguida à crítica literária desta semana, que dedicamos ao compêndio em capa brochada da Dica da Semana, sob a chancela da Lidl, Livreiros, SA...

Anónimo disse...

Olha faz-me uma capa brochada pode ser?

Anónimo disse...

Só faço capas em Conqueror rugoso. As bróchadas tens que ser tu a fazer!

Anónimo disse...

Então chancelamos...

Anónimo disse...

Ó parvo qdo é que me ligas? OU ESCREVES???

bjibhos,
aanes