quinta-feira, março 31, 2011

Um ar que se lhe dera, não fosse...

Cruzou o montado para matar saudades desse som dos tremoceiros por baixo das solas. E porque era o único lugar que conhecia onde podia andar até toda a vontade ser apartada. Demorasse o que demorasse. Descobrira-o há muitos anos, num momento de obstinado espírito aventureiro, esse lugar que não leva a lado algum, deserto de gente onde, de longe a longe, nos cruzamos com um monte abandonado, decidimos explorá-lo, espantamos uma coruja das torres que dormita nas vigas apodrecidas...
 ...ali está ainda a lareira, faltam as linguiças a fumar, aqui a tina, falta uma cara a lavar, acolá a salgadeira, sem o toucinho da matança, um cajado de andança, um tarro de matar fomes a garfadas de mudança...
 ...que suspende, ainda, do prego na parede. Seguimos depois por entre um pomar que continua a florir, silencioso apelo por toque humano, um ninho de melro entre dois ramos que suportarão tangerinas, três ovos azuis pintalgados, mais charnecas e lagos e montes e sombras de azinheiras e horas depois a obrigar à pernoita ao relento, porque o montado só tem fim quando o tem, lembras-te, pobre diabo? Tantas viagens que fizera e era sempre esta a recordação. O céu de farrapos a fazer-se noite escura e sem lua, da primeira estrela à renda de um firmamento avassalador, diminutivo, o coro de afinados canoros e chilros à desgarrada a dar lugar a grilos, ralos, mochos, o restolhar de um texugo, talvez uma raposa, um barrasco, não, afinal era um ouriço-cacheiro ou um ginete ou um furão. Dois dias de caminho. Uma noite de desassombro. Água e um casqueiro de quilo. Que não comera. Cigarros e uma lanterna. Que não se atrevera a ligar. Um caderno de notas e uma Bic Cristal. Que falhara de tanto escrever. Uma navalha e uma corda. Que não usara. Antes vira um cão dependurado no ramo mais baixo de um sobreiro enfezado, onde bulhava, por um naco de putrefacção, um par de gralhas. Foi ao romper da aurora, a geada a colar a roupa ao corpo, três águias a descrever círculos lá no alto e, mais tarde, já o sol a pino, alguns grifos, demasiado grandes para erguer o seu peso no ar fresco matinal. Só à tarde chegara a algures. Beringelinho, Castro Verde. Este é o momento em que já não recorda. Vai, apenas, acariciando com as palmas das mãos, sujas de não terem pousado na consciência, as pontas das espigas que serão pão para a boca. Da sua não sai um ai. Nem sairá. Nunca mais. E caminha. As praganas nas meias. Caminha tanto que possa gritar com a certeza de não ser ouvido. Não o faz. Segue, evitando os trilhos do último zagal que por ali passou...
...agora é pastor de si mesmo e do seu rebanho de emoções, tresmalho consciente a precisar de exorcismo, Homem Feito depois do sismo, ao pescoço a corda do Judas, ante si um Barrabás...
E o nó que não desfaz!






quarta-feira, março 09, 2011

Nasty Habits Migration

1. Não passou um ano desde que andei por areais Bahianos a fazer um das coisas mais compensatórias da até agora ainda sobejamente inútil vida do dIAZ. De manhã, cedinho, palmilhava, com a Betânia, alguns quilómetros de praia em busca de sinais de desova de tartarugas marinhas durante a noite. Identificado o lugar, desenterrar o local da postura, fazer a contagem dos ovos, voltar a enterrar o "ninho" e protegê-lo de potenciais predadores que, felizmente, hoje em dia, são apenas outros animais irracionais. Nem sempre foi assim. A Tamar ICMBio, que tão simpaticamente deixou o tuguinha interessado atrapalhar uma lida que, para eles, é mais que rotineira (embora os mova alguma paixão), nasceu porque, nesta linha de praias paradisíacas, os répteis eram um acepipe. Até aos anos 80, eram vigílias nocturnas à espera da chegada dos pobres animais, a chacina, a carapaça para artesanato, a carne para churrasco, os ovos para confeccionar as mil e uma sobremesas que tornaram a doçaria bahiana famosa. E fui realmente feliz quando vi aparecer, da areia, alguns minúsculos seres que, não importa qual a direcção em que os colocava, dirigiam-se sempre, e com uma urgência louca, para o mar. Acho que até é capaz de haver, por aí, fotos documentando a coisa.


2. Numa das incursões quinzenais ao supermercado indiano do Centro Comercial da Mouraria, o dIAZ ficou estático, incrédulo, pasmado, boquiaberto, assombrado, quando viu entrar a mulher com duas tartarugas de aquário (Tartarugas-de-ouvido-vermelho — Trachemys scripta elegans), ambas com cerca de 20cm de comprimento. Mas porquê tanta admiração? Se até eu tenho uma! Porque estavam ambas enclausuradas num garrafão de cinco litros de água (misericordiosamente) destapado. O pouco (ou nenhum) espaço fazia com que se debatessem, uma em cima da outra, ora de lado, ora em pé, num frenesim louco, imagino que desde que ali foram postas, há cerca de dois anos, quando ainda cabiam no gargalo. Mal sabia eu que o meu espanto se tornaria choque. É que da boca da "dona", saiu a mais estranha pergunta dirigida ao empregado na caixa, em pronúncia caipira Cê num téim nada prá cómê isso? e o meu espanto parece migrar para o rapaz que, também incrédulo, faz a típica pergunta de quem não quer pensar, sequer, que percebeu Comida para tartarugas? e ela replica Num sinhô... é prá cuzinhá, mêmu, e os olhos do rapaz abrem-se até quase revelar o nervo óptico para depois, com a maior das calmas, declarar num português correctíssimo Nós não somos chineses, minha senhora. Nem brasileiros, pelos vistos...



terça-feira, março 01, 2011

This State We're In

1. Não me lembro de ter havido um ano em que os Óscares não tivessem sido enxovalhados neste mui democrático espaço da blogosfera. Não me lembro, reitero. Porque pode muito bem ter acontecido. Como quase ia acontecendo neste Ano de Nosso Senhor Jesus Pacheco Abafa-o-Cavaco Pereira Cristo de 2011!


2. Assumo padecer de masoquismo. Uma espécie muito particular mas, ainda assim, masoquismo. Do flagrante. Sempre que, num serão de zapping, apanho os "Malucos do Riso", "O Prédio do Vasco" ou o "Maré Alta", fico por ali. Não nutro por nenhuma destas séries qualquer espécie de agrado, simpatia ou sequer pena. O que me leva a ficar de olhos bem fixos no ecrã é, unicamente, a vã esperança de ver no próximo sketch alguma piada. Não mais que no sketch anterior. Piada, só. Um mínimo histórico de piada. Capaz de puxar, sei lá, um sorriso, que seja, vá. Ou uma expressão facial qualquer que não seja o mero franzir de um sobrolho. 
Naturalmente, chego ao genérico final com o estômago num nó de mareante. Uma vontade de me entregar ao álcool de corpo e alma. À heroína, se tal for preciso. Desde que uma voz me sussurre ao ouvido "Se deres no cavalo a ficção humorística nacional melhorará 0,1%", eu juro que o faço. Não é possível que sejamos assim tão maus. Não é possível que, sketch após sketch, ano após ano, definhemos.


3. Numa perspectiva muito semelhante, continuo sem perceber o que leva as pessoas a continuar a assistir à cerimónia dos Óscares.