terça-feira, novembro 29, 2005

John Merrick

Só não se lembra deste nome quem nunca viu um dos melhores momentos do cinema de sempre: Antes de ser Sir, antes de ser considerado por Hollywood, que acabou por "prostituí-lo", muito antes de dizer a Clarice que comeria o fígado de alguém acompanhado de favas e vinho Cianti, Anthony Hopkins, de cabelo preto, a mudar o semblante quando destapam a "jaula" onde o tal senhor estava encarcerado e fazia digressões pelos "freak shows" britânicos. A câmara faz zoom in e só depois do grande plano, sem cortes por parte de David Lynch, Sir Anthony deixa cair uma lágrima.
Serve isto para dizer que o Homem Elefante costumava recitar o seguinte:
"Tis true my form is something odd.
But blaming me is blaming God;
Could I create myself anew,
I would not fail in pleasing you.
If I could reach from pole to pole,
Or grasp the ocean with a span,
I would be measured by the soul,
The mind's the standard of the man".
Como quem ignora belos momentos de cinema, há também quem ignore o que há de melhor na vida. Que poderiam dar, dependendo de quem lhes pegasse, belos momentos de cinema, portanto!

quinta-feira, novembro 24, 2005

Coisa Bonita, a Palavra!

Como diria o Neil Hannon, esse grande senhor do movimento musical mais incompreendido do século (Britpop, pois claro), muito graças aos rabetíssimos Oasis (lembro-me inclusivamente da urgência dos Radiohead em darem uma volta às próprias tendências, ficando para sempre, porém, "High and Dry"):

"If you were a horse, I'd clean the crap out of your stable and not even once complain"

E que bom que era!

terça-feira, novembro 22, 2005

A Cinza dos Dias

Se a outros assoma o cheiro
à podridão que a chuva traz
Meu corpo é o permeio
do mal que a água traz

Veículo condutor
"bunker" perfeito
ar rarefeito
exímio tradutor
Agora o aperto
neste peito isolador

Claustrofobia
Ansiar por calor
sonhar com a luz do dia
a profunda, amarga dor...

segunda-feira, novembro 21, 2005

O Deus das Grandes Coisas

Dois altares naquela casa. Um deles à entrada, frente à porta, quem entra encara-o. Consagrado a Ravindramat, o Deus das Grandes Coisas. Ao lado, junto ao rodapé, por baixo da caixa de ligações da Cabovisão, o outro. Uma palha de incenso, um pedaço de manga, uma tigela de leite e a figura de Amin, o Deus dos Pequenos Nadas, minúscula.

Há muito que não pára de chover. Esperam-se grandes inundações. Ontem, a família quase não coube no Hall. Frente à expressão severa da figura de Ravindranat, rezámos até à beira da comoção. As águas imundas, infectas, não chegarão, por certo, à nossa porta!

Mas eu prefiro quando a minha mãe me passa a mão pela cabeça quando finjo estar a dormir. Na manhã seguinte, deixo um gomo de tangerina em frente ao largo sorriso da minúscula estatueta de Amin.

quinta-feira, novembro 17, 2005

Debujo de yo mismo

Só tu me despes de mim
Destes eus de que não gosto
Dessa dor sou rei deposto
Nascer outro neste palco
atrás do pano carmim

quarta-feira, novembro 16, 2005

Oooolaaaaa.........

E quando acenas a tua mão rasga a luz
a tua, em teu torno, que o teu corpo produz
que eu arranco em espasmos de prazer
e tu dás, voluntariosa, sem mais nada dizer

Ao querer-te tanto a minha própria apaga
temendo o dia em que o teu aceno se esvai
mas quando acendes o fogo que em mim propaga
a tocha em tua mão sou eu... agarra-a, que cai!

terça-feira, novembro 15, 2005

Lembrete

É só para dizer que no DN de dia 14 de Novembro, a crítica ao concerto do Devendra Banhart, assinada pelo Tiago Pereira, tem por título: "Caravana feita de hippies e MARIACHIS. Boa, puto! Vi que sabes!
E parabéns ao Público, também, por terem deixado o objectivíssimo Mário Lopes tomar o lugar da pretensiosíssima Kathleen Gomes! E sim, ela já tinha dito que o Devendra era especial, mas duma maneira perfeitamente idiota!

segunda-feira, novembro 14, 2005

12 de Novembro de 2005

Entrou no palco da Aula Magna com o seu pouco peso distribuído por quase dois metros de altura. Cabelo longo, barba profusa, olhos enormes e pestanas maiores ainda. Gestos pueris, voz trinada, leve, leve, leve... uma sala cheia de sons que podiam emanar duma floresta, belos, belos, belos... "não estamos habituados a este silêncio! Por favor, conversem entre vós enquanto tocamos. Por favor"! Por respeito a ele, ninguém obedeceu. Por respeito a nós, o Devendra limitou-se a fazer o que faz de melhor... até que anunciou a música que eu esperava (como a todas com igual ardor): "escrevi-a num dia em que tive muito frio, mesmo tendo barba e o cabelo grande. Um dia vou ter um filho e vou querer que ele tenha o cabelo comprido para que nunca tenha frio". Pois é, ó Banhart... e o meu ouvir-te-á sempre que eu possa!
Para que nunca tenha frio!

BAH!

O Marcel Proust era um chato! E ao gritá-lo incorro no risco de ser decepado com assaz vagar pelo Damas, esse hominídeo que, tal como eu, tem problemas em relacionar-se com humanos!
Porém, todos merecem o benefício da dúvida até prova em contrário, pelo que este fim de semana deparei-me com uma frasesinha solta que é bem melhor que estar a levar com o "Em Busca do Tempo Perdido":
"O verdadeiro propósito das viagens não é ver novas paisagens, mas sim ganhar novos olhos".

terça-feira, novembro 08, 2005

Calçada do Combro

Não é preciso ler a História do Cerco de Lisboa para saber que até antes do terramoto corria um segundo braço do Tejo de Alcântara Terra à Praça da Figueira. Mas talvez seja necessário percorrer algumas linhas do Mestre para ter alguma noção de tudo o resto. De como os bairros típicos, por exemplo, estavam todos separados por consideráveis campos de oliveiras e alguns carvalhos, olaias e sobreiros, formando assim pequenas aldeias e não uma cidade no seu todo. Isto ter-se-á passado durante tanto tempo que o chamado "bairrismo" que ainda hoje existe (perigado entretanto pela ocupação de não lisboetas) demorará ainda a desaparecer. Bom observador será o que não necessita de nada disto. Basta ser-se curioso e deslindar a toponímia olissiponense. Bom exemplo é a Calçada do Combro, limite entre a Bica e o Bairro Alto. O combro, ou duna, monte de areia, areal íngreme, ficava à direita de quem vai do Camões em direcção à Rua do Poço dos Negros e Poiais de São Bento, começando logo a partir da Rua da Rosa.
E é só isto por hoje!

segunda-feira, novembro 07, 2005

Da periferia de Paris para o Mundo

Foram séculos e séculos de desigualdade! Foram religiões e filosofias debitadas em templos com o intuito de vergar a ralé. Cegá-la com a concepção de que os justos seriam recompensados, que a pobreza, a ignomínia, a mendicidade, a indigência, a míngua extrema, a penúria completa eram condição para a ascenção ao paraíso, que o facto de uns terem e outros não nada mais era que um infortúnio ultrapassável.
Agora, que o fosso entre os que engordam à custa dum mundo esclavizado e os que, não podendo comer uma porção por dia, são involuntariamente bombardeados com anúncios McDonaldianos, Friedchickianos, BMW's de topo, estilos de vida impossíveis sem um fato Hugo Boss aumenta, a inexorável revolução chegou! Não temam chineses nem norte-coreanos, afegãos ou iraquianos, nem tão pouco norte-americanos. O colossal mar de magma que são os milhares de bairros da lata, guetos e becos deste mundo já não está mais em ebolição! Entrou em erupção!
No planeta de hoje, é impossível ser-se rico sem ter nunca condenado alguém à infâmia! Quanto mais tempo pensaste que serias feliz com os teus dois carros, a tua vivenda com acabamentos de luxo, a tua casa de férias, a tua empresa que admite e despede com a displicência idêntica à do empregado que administra a injecção letal no canil municipal? Quanto tempo pensaste que o teu filho nascido em berço de ouro passaria sem ser comido vivo por todos os irmãos africanos que teriam debulhado diariamente num prato com metado dos brinquedos que esse branquelo tem no quarto?
Agora vem a paga!
Sofram...
...ainda que não tenham gozado o suficiente!

sexta-feira, novembro 04, 2005

Nosso Jorge

Aprendi a gostar de samba com o Amigo Chico, ainda ele era De Holanda...
Serve isto para aventar que os sambas do Seu Jorge, comparativamente à sobre-elaboração quase jazzística do Buarque, parecem monocórdicos. Não fez mal. Seu Jorge canta Blues da Favela, segundo a sua própria definição. Canta letras que recebe pelo correio (muitas de presos), que falam quase sempre dos favelados, explicam a violência sem nunca a excusar. E é no meio de um hino seu:
"A favela, nunca foi reduto de marginal
Ela só tem gente humilde Marginalizada
e essa verdade não sai no jornal
A favela é, um problema social
Sim mas eu sou favela
Posso falar de cadeira
Minha gente é trabalhadeira
Nunca teve assistência social
Ela só vive lá
Porque para o pobre, não tem outro jeito
Apenas só tem o direito
A salário de fome e uma vida normal"
...que se levanta e começa a esclarecer o público menos informado em relação a essa mesma realidade. Que não vale a pena tentar controlar com polícia quem tem fome, que ninguém imagina o que é ter que "vender bala no trem" para comer e ao mesmo tempo olhar horas a fio para os "comerciais" da McDonald's, que nós, os portugueses, sabemo-lo porque temos muitos brasileiros cá e família lá, e acaba a agradecer pela nossa presença, que temos presente que todos aqueles que estão ali são, eles próprios, favelados, mas queríamos desfrutar do que teriam para nos oferecer.
É então que toda a Aula Magna se levanta num aplauso tão efusivo que Seu Jorge, o Mané Galinha da Cidade de Deus, o Pelé dos Santos no "Life Aquatic With Steve Zissou", chora! Mete as mãos na cara e ganha o respeito dos outros em palco que o foram abraçar. Porque esta "tanta gente falando minha língua" não eram, afinal, o bando de preconceituosos em que se tornaram todos os outros ex-colonizadores. Ajoelhou-se. Ergueu as mãos para nós. E cantou, por fim, só com a sua guitarra, cigarro entre as cordas, a sua versão do Life On Mars do Bowie! Para mim, o mundo parou.

quarta-feira, novembro 02, 2005

O Toni

Anthony entra em palco de forma a que não se perceba se é ele a estrela principal ou se o são algum dos outros, uma violocelista, dois violinistas, dois guitarristas, um baterista e um baixista. Move-se como um ser estranho, tem feições de um estranho ser, não tanto de extraterrestre, talvez de uma raça humana ainda por descobrir numa qualquer selva tropical, deserto inacessível ou profundeza oceânica. Por trás da minha Leica R4 (esta foi mesmo à cagão), tento detectar membranas interdigitais, polegares não-oponíveis ou guelras no pescoço, mas apenas vejo cabelo preto, dois totós, ausência de pescoço e maneios do mesmo a que obrigam uma caixa toráxica com menos projecção por estar sentado ao piano. Antes de assumir essa posição, pousou uma sacola verde e não tirou um pullover que trazia atado à cintura. Olhou em volta, olhos enormes, boca diminuta, disse "good night" e foi então que tudo parou. Já vi espectáculos musicais, recitais, performances com banda sonora, mas nunca tinha visto uma fonte de energia, um veículo de sons celestiais que passavam por ele e espalhavam-se pelo Coliseu, tocavam cada um dos presentes com um abraço quente e um dedo ao de leve pela coluna vertebral até o arrepio subir ao cerebelo! Era ver milhares de caras de sorriso enternecido olhando o palco, como se estivesse ali à frente a promessa de um novo Messias, aquele que traz outra Boa Nova: Só existem dois tipos de música... a boa e a má!

A Inbicta

Gosto d'O Porto. Gosto da maneira como gitanitas andrajosas partilham o Campo Mártires da Pátria com outras mulheres a quem bastaria dizer-me "Então... Bámos?". Gosto de como por trás da fachada anti-mouro toda a gente se desdobra em indicações do melhor caminho para a Av. da Boavista. Gosto dos restaurantes que não permitem que boa decoração seja sinónimo de porções de proporções hebraicas e preços a condizer. Gosto das águas-furtadas de zinco. Gosto da Estação de São Bento, um "buraco" no meio de um cenário Património da Humanidade. Gosto mais de Santa Catarina que da Sá Carneiro. Não gosto muito do Magestic mas vibro com a Lello & Irmãos. Gosto da Francesinha do Cunha, conselho precioso do Amigo Jorge. Gosto de como aquela malta não vai logo para casa depois do trabalho e encontra-se à irlandês em cafés soturnos. Gosto dos lábios carnudos e seios generosos das tripeiras. Gosto das roupas que usam, despreocupadas e impossíveis de identificar com um "estilo", que é coisa de lisboeta a armar-se aos cucos parisienses. Gosto de gostar do Porto. Gosto de como o lisboeta pensa que ser europeu é vestir-se assim e ir à discoteca assada, enquanto o tripeiro sabe que ser europeu é ser-se em Barcelona melhor que em Madrid, em Manchester melhor que em Londres, em Nápoles ou Milão melhor que em Roma, em Antuérpia melhor que em Bruxelas.