Eu (Alzira Esfregona), o Joca (Matias, que acabou mesmo por dar em arquitecto), o Elvis (Batista), o Cau (Ton-Ton Macúte) e o Beto (Quintas), todos passámos, em tenra idade, pelo Atelier Escala - Maquetas de Arquitectura, SA, posse de Freire e Pato, antigos maquetistas do Arq.º Taveira. Assim que souberam que o escândalo iria estoirar, abriram o seu pequeno negócio. Fizeram bem. Optaram pela rua da Amendoeira, à Mouraria. Fizeram mal.
Entre dealers, clockers, jogadores profissionais e amadores compulsivos de lerpa, Fernando Maurício, verborreia gritada ao vento, mau vinho e bons Santos Populares, a vida corria com a normalidade possível.
A rua da Amendoeira, tão antiga como o Castelo (itself), era exemplificativa. Na porta ao lado do atelier, o Mota, sexagenário de três hábitos diários: De manhã, fizesse frio ou calor, descascava uma laranja ao postigo, se estivesse de ceroulas, ou na rua, caso já umas calcinhas de vinco e plissa fizessem "pendant" com a camisola de alças, enquanto esperava que os carapaus fritassem. Ao meio-dia, invariavelmente, abeirava-se das grades das nossas portadas e perguntava-me, aproveitando-se de toda a candura, ingenuidade e quase castidade que os meus 16 anos me concediam para perguntar: "Então... já comeste o cu à namorada? Passa-lhe manteiguinha ou margarina na regueifa, que é um descanso". Ao fim da tarde, chamava nomes à mulher (Puta e Rameira, nada de grave), por forma a que todos os transeuntes pudessem ouvir. Ela respondia com um singelo "lambe-conas" que, não dizendo tudo, lá perto andará! Porta seguinte, o Ti Agostinho, merceeiro coxo equipado com um motor de baixa-rotação, logo, tão durável que nem consigo dizer quantos anos deveria à cova. Cortava as fatias de torresmos suficientes para que, ao fazer a sandosha solicitada pelo cliente (eu), uma delas teria como destino a boca do próprio, na hora. Sorria de cada vez que eu lhe pedia uma malagueta seca "dessas aí penduradas", providencial remédio para os ataques hemorroidais do xô Pato. Lá mais abaixo, de porta aberta À esquina, A esquina, a "Tasca do Marquês", ponto de encontro de tudo aquilo que, na altura, o movimento "grunge" de Seattle teria dado tudo para conhecer. As nossas três portadas tinham vista para o quotidiano mais inimaginável. Mesmo em frente, duas das personagens mais emblemáticas dos bairros lisboetas. Mãe e filha, uma septuagenária, a outra não. Sexagenária, talvez, se tal fosse possível, mas não era, sendo que para todos os efeitos (aqui, para o efeito: "a menopausa tarda em chegar"), confirmavam-no os "paninhos do período", estendidos na corda, lado a lado com cuecas (manchadas LÁ, no sítio), tamanho XXXXXL. A filha sofria de paralisia cerebral não muito profunda, apenas o suficiente para eu não perceber absolutamente NADA do que dizia. Era constrangedor. Tinha uma galinha de estimação, de sua graça Pipi. A galinha Pipi corria rua abaixo assim que ouvia os primeiros acordes do genérico da Tieta do Agreste (Caetano, isto não é nada bom), pulava para o postigo e ali ficava, durante todo o episódio, de olhos na televisão. E quase que poderia jurar que os via piscar quando o Sinhôzinho Malta sacudia o relógio. Acabou nas ferozes mandíbulas do Benfica, um pequinês albino para cima de irritante!
Na casa acima destas, por fim, o Grande, Inigualável, Excelso, Único, o Cabeças... Era este rapaz, de vez em quando, o "dealer" do bairro. Das outras vezes fazia como os outros: Vinha vender uma televisão, um vídeo (nestes casos, a mãe aparecia cerca de uma hora mais tarde a tentar reavê-los), e de tudo um pouco que permitisse ao Freire ter a casa equipada com o que de mais moderno na altura poderia haver por um terço do dinheiro. A seguir, ia ao Casal. Fazia-o, na altura, há 19 anos. Com apenas 18, a cumprir o serviço militar obrigatório, fugiu do quartel para ir ter com a namorada. Desertou, diz-se em termos jurídicos terceiro-mundistas. Foi para a cadeia. Agarrou-se. Durante todo esse tempo, nunca partilhara uma seringa. Picava-se em casa com seringas de vidro que competiam pelo mesmo espaço com uma N.ª Sr.ª de Fátima fluorescente, na mesa de cabeceira. Repetia vezes sem conta: “Chavál... tu nunca experimentes esta merda, qu’isto é do pior. Ainda por cima, porque hoje em dia já não há cavalo. O cavalo do bom só ouve praí um ano”. E logo a seguir: “Dá-me aí dois cigarros”. Um era para partir e poder puxar a “sopa” da colher com o filtro espetado na ponta da agulha (para filtrar, pois então), o outro era para fumar depois do pico. Uma manhã levou um gajo qualquer lá para o quarto e ao fim de meia hora aparece a arrastá-lo pelas escadas abaixo. Deposita-o no meio da rua. Alvo como a neve. Lábios roxos. Berra-me: “Chama aí uma ambulância, ó dIAZ”. Pergunto-lhe o que aconteceu. Responde-me: “Estes mariolas metem-se a dar na fruta e não se aguentam à Bom-Boka”!!!
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