sexta-feira, outubro 02, 2009

Do outro lado da ponte...

... separa-nos o rio Kwai, é a azáfama que se tornou, em poucos dias, parte de mim, uma espécie de companhia calorosa para além deste calor que sufoca, obriga a muita água, de coco ou não, cerveja Singha, bem melhor que a Leo, ou ao sumo de umas tangerinas que de verdes só têm a cor, porque três colheres de açúcar nas nossas não igualariam tanta doçura, como aquela nos olhos rasgados deste povo, afabilidade budista aparte, beleza feminina, de boca carnuda e pele luzidia, também. Andar pelas ruas de Bangkok é uma arte, um slalom com trejeitos de corpo suado, por entre fumo de incenso e woks em eterno fervilhar de tempuras de tudo, odores doces, ocres, um risco de luz de sol a pino que rasga a penumbra de um mundo que me é tão longínquo quanto apetecível, sofro de amor por isto, como se ainda agora estivesse em torpor de paixão para adivinhar que, um dia, nada mais restasse que um post it sobre os lençóis encardidos "Foi bom, mas parto". Andar por outras ruas, longe da capital, é toda uma outra viagem. Neste caso em particular, sei apenas que a viagem de autocarro durou mais de uma hora. Ainda não me dei ao trabalho de olhar para o mapa por estar deliciado com a imprecisão, uma forma vagabunda de se estar perdido com uma despreocupação que permite sorver tudo isto com papilas gustativas e globos oculares e tímpanos com a afinação em modo sharp. Não percebo, sequer, se este sítio é uma aldeia feita, por agora, em mercado, se é um mercado onde as gentes vivem, para lá das bancas, porque não há caos mais ordeiro que poder passar para trás das mesmas para aceder à ruela paralela e, nesse curto percurso, passarmos por camas e tv's e pratos por lavar e crianças adormecidas em redes, uma pequena madeixa de cabelo que se move a ar de ventoínha apontada em cheio. Nada se compra sem provar. Dos patos assados (cabeça e patas incluídas, olhos brancos) aos peixes doces, das baratas cozidas em erva limeira (chá príncipe) aos casulos recheados da respectiva crisálida, grilos, formigas-de-asa com malaguetas verdes e cebolinho, peles de tigres e garras dos mesmos (paradoxalmente, os monges tibetanos insistem em usar uma faixa tigresse, mesmo depois do Nosso Senhor Dalai já ter alertado para a questão), chego, entretanto, a um alguidar com tartarugas. Vivas. E em todo este encantamento, esta certeza de que pertenço tanto aqui como à sombra de uma azinheira, numa mão um naco de queijo de Serpa, na outra um quarto de casqueiro, entre as pernas uma garrafa daquele do Parreira lá em Pias, consigo ser detestavelmente ocidental e pensar São para comer, aqui, já, arranjam-mas ainda vivinhas e como-as com arroz frito. Não. Destinam-se a ser soltas no leito do rio, em conformidade com a tradição budista que dita uma melhor sorte em troca da cedência de vida em liberdade a um ser vivo. É o que faço. Por 50 Baht (€1), tenho a hipótese de conceder a um destes bichos a oportunidade de prosseguir com os 200 e tal anos que ainda lhe restam. Levo duas ou três dentadas até chegar à margem. Peço o tal desejo e tento ignorar as duas sanguessugas que já estão em cada uma das minhas mãos, erguendo-se em busca do melhor lugar para se colar que nem lapas, passo a comparação, destinada apenas a melhor descrever uma imagem tão alien para a maioria. No preciso momento em que solto a carapaça, duas crianças aparecem no cais e dirigem-se ao barco que ali está. Levantam as tábuas do fundo, uma a uma, ignorando-me, certos de que eu não sei que raio estarão a tramar. Sei. E vejo, com um sorriso de quem percebe que as coisas são assim mesmo, que retiram da água a mesmíssima tartaruga que eu deixei na torrente, minutos antes. Solto uma gargalhada. Eles não, porque percebem que eu percebi. Mas mais que isto, percebi que gosto de aqui andar. Porque não há fealdade possível onde a beleza cresce como erva daninha. Este mundo é feito de muitos outros, mais pequenos. E só pararei quando encontrar o maior, em torno do qual orbitamos. Estou cada vez mais perto. Porque estar longe é que dói...

E oiço lá longe coisas familiares que me tiram este agridoce de boca...

4 comentários:

Zorze Zorzinelis disse...

O melhor era teres largado a tartaruga no Tejo! ;)
(ainda me estou a rir do submityourass... topo!!!)
Abraço, ah, essa merda da boca tá melhor?!

Anónimo disse...

humm...?...
Freaky

Maria Ninguém disse...

Sabes o que me fica mais neste texto? ..

a tua capacidade para, o teu respeito com, a tua noção de que a ordem natural daquele sitio é essa, a de tu libertares a tartaruga e logo outros a irem apanhar novamente..o sorrires perante isto por saberes que não és tu que vai alterar a ordem de um sitio nem das pessoas..

eu, pq sou pita inconsequente e não pensante ao primeiro instinto, acho que lhes mandava logo um berro..e seria parva..pq há coisas q n se mudam, pelo menos n por nós..há coisas q são como são já antes de nós aparec(S)ermos e assim serão depois de partirmos..Falta-me isso, aprender isso..e ter calma suficiente para sorrir..

Anónimo disse...

Assim sim Mariachi. Gosto.

Devias ter esse espirito para com as gentes de cá...!

;)~

Tóne