Élvio vira-a sob o strob. Na noite anterior. Cinquenta e três
fotografias em apenas trinta e um segundos. Lembrava-se de cada uma. Todas
perfeitas. Com que forraria a parede da cozinha. Nesta ergue as mãos. Os dedos
ligeiramente flectidos. Como os de quem não quer agarrar nada nem ninguém.
Gente para quem tudo é mero digladiar pela razão. Pelo poder supremo que é não
deixar a legitimidade transpor a fronteira de si. Reside, aí, a derradeira
esperança de exorcizar um amor que foi tão intenso quanto agora é um resto de molho de tomate de uma refeição ultracongelada ressequido no prato. Posse como a que temos sobre o gato do vizinho. Aquele que
vem comer a nossa casa porque é bom. Sabemos que não é nosso. Mas fingimos que
sim. Um egoísmo transvestido. Cobiçoso capricho. Caprichoso desejo de nada.
Nesta rodou a cabeça. Ficou com os cabelos no ar. Como que congelados. Um
brilho intenso como o da primeira vez que a viu. Debaixo de um sol matinal a
entrar, ainda tímido, pela janela. Renascendo em fulgor ali, no desgrenhado
cocuruto. O cabelo dela. De cheiro a lençóis suados de afecto seu. Como o que
nunca dera a ninguém. Que ela deitou janela fora sem ver quem ia a passar.
Élvio não merecera nem o compartimento da reciclagem. Agora, sentado aos pés da
cama, olhando o espelho em frente, lembra-se apenas do strob recortando a
silhueta. Uma, duas, cinquenta e três vezes. De nada mais. Nem da primeira vez, a
paixão de um Universo Inteiro a conspirar por eles. Nem das lágrimas em excesso
de sal dos últimos tempos. Enfia a mão no fantoche que fizera para ela. Para
apontamentos de humor parvo, idiota. O melhor. Mas que faltava, agora. Tanto.
Baptizaram-no. Os dois. Como a um filho. Godofredo. Uma meia, duas bolas de
ping pong e um Magic Marker. Como aquele que o Vincent Vega pede à Jody, a
namorada do Lance, para poder desenhar a cruz que serve de mira à injecção da
Mia. Adrenalina. É isso. Olha-se ao espelho. Move os dedos. Faz uma voz aguda. A mexer os lábios. Não tem jeito para ventriloquista Que cara é essa? A
vida segue, pá. Só tens que fazer o que tens que fazer. Élvio vira a cara em
direcção a Godofredo. Olha de lado para o espelho certificando-se que a cena
fica bem. Responde Vai para o caralho!
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