quarta-feira, julho 20, 2011

Guião


Cristóvão plantou os cotovelos na mesa. Sentiu a humidade atravessar o tecido da camisa. Café | cerveja | vinho | gordura | bah! Numa situação normal sentiria asco. Não agora. Que a tinha à frente. Para olhar sem peias. Pupilas nas córneas. Por entre o fumo do seu próprio cigarro. Um coto entre dedos. Tingidos de amarelo. Uma figura celeste, luminosa, no centro de um tasco esconso e sombrio. Como uma aparição só para si. Sempre foste um tremendo egoísta, meu biltre, ouvira tantas vezes. Se fosse cientista, diria que Ana ausentava a gravidade em roda. Só por ficar com algumas madeixas sobre os ombros quando virava a cabeça em busca do autor do sonoro arroto. Ou por passar a língua nos lábios de quando em vez, quebrando finos fios de saliva. Ou só por respirar, de 2 em 2 segundos, demorando as expirações exactamente mais 4,2 milésimos que as inspirações, havia calculado, enchendo ambas as faces de uma folha A5 quadriculada de contas insanas. Como era apenas um qualquer, daqueles que se vêem, todas as manhãs, olhar apartado daqui, na carruagem do metro, experimentador de mil artes sem possuir especial qualidade em nenhuma delas, um amador de tudo, oh mediocridade, sorriu apenas. Um longo, demorado e incontrolável sorriso a expiar pecados antigos, imemoráveis, que já não estavam, há muito, neste plano e chegava a duvidar terem sido, afinal, os seus. São Cristóvão era um barqueiro, avançou ela. Ele baixou os olhos em direcção à chávena de onde tentava tirar o café ressequido dos rebordos com a colher. Ela prosseguiu Um dia transportou um menino entre as margens. A meio do percurso reparou que era cada vez mais difícil. Disse à criança "pesas como se carregasses o peso de todo o mundo aos ombros". O menino respondeu "E tu não só me carregas a mim como a quem o criou. A partir de agora chamar-te-ás Cristóvão, ou aquele que transporta Cristo" e desapareceu. Voltou a olhá-la nos olhos, cemisserrou-os e gaguejou E a barca... Ficou mais leve?, Ela suspirou, baralhando-lhe as contas da folha A5 em papel quadriculado. Não interessa para a história. São Cristóvão ficou para sempre o santo dos viajantes, dos caminheiros, dos guias. É só isso. Os olhos dele abriram um pouco mais. Só um pouco mais Era isso que me querias dizer? Depois de tanto tempo sem nos vermos?, e agora era ela que baixava o olhar, os cotovelos dele apoiados num reflexo de unto sobre a mesa, Vou-me embora, Cristóvão. Desta vez, o único Cristóvão que levarei comigo é o outro, o da barca. Ele pensou que choraria. Mais. Ela também. Ao balcão alguém pediu a conta da mesa Daquele senhor que acabou de vomitar, é melhor levar a esfregona. Ela levanta-se e estende um lenço de papel àquele farrapo do que fora um dia, um homem admirável, possante, portentoso, viril, inteligente e luminoso que agora retirava dos cantos da boca restos de algo indecifrável. E indigesto. Ele ainda a viu colocar a embalagem no bolso do casaco. Renova. Depois seguiu-lhe os passos até ao balcão, onde disse Vamos Pedro... Meu portador das chaves do Céu!




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