Ramiro, o Texugo, era um plantígrado normal. Para texugo, pelo menos, não estava nada mal. Era gordo, pois. Daí o zoomorfismo Gordo que nem um texugo, expressão tão amplamente espalhada pelo território luso quanto vulgar já foram, em tempos, os avistamentos, de Norte a Sul, do Meles taxus (ou Meles meles). Agora não. São magros tempos para o balofo quadrúpede. Ramiro (Ti Ramiro, como o tratavam Júlio, o Ouriço e Tó Quim, o Ginete, amigos de comezainas no pomar), conhecido pelo seu temperamento, era porém um mamífero feliz. Tinha uma toca bem mobilada, com uma mesa de jantar da melhor nogueira da Quinta do Bacelar, propriedade dos Quintela, uma confortável mobília de sala em carvalho maciço (e não laminado, como Olavo, o Furão, tinha no seu claustrofóbico buraco T0) e uma cama em pinho, madeira sem qualquer nobreza não tivesse sido manufacturada no Atelier do Romão, o Castor, solícito marceneiro da Ribeira das Moças, lá para os lados da Charneca da Anta, com acabamentos preciosos assinados pelo Térmites Garbosas, Gabinete de Decoração S.A. sediado no Quartel dos Bombeiros Voluntários de Folgosinho. Ramiro fora, em tempos, o mais solicitado por todas as fêmeas do Vale. Menos a Edite, que era frígida. Já não. Já não era solicitado, portanto, porque a Edite, sabe dEUS dos Texugos onde andará essa magra amostra, continuará frígida. Não que as suas generosas badanas de gordura nos flancos, ao longo das riscas laterais, não fossem as mesmas (são como os abdominais e bíceps e "inteligência" para as fêmeas humanas), mas porque Fora Um Ar Que Se Lhes Dera aos exemplares da espécie. Tudo porque Luís Vilaça, homem portentoso, de uma só sobrancelha a esconder uns olhos muito pequenos, virtuoso cobridoiro de casadas insatisfeitas e meninos de buço, solitário caseiro da vasta propriedade Monte da Arrufada, comprara O Livro de Pantagruel:
(...) "não é uma captura comum e certamente por esse motivo escasseiam as maneiras de cozinhá-lo. Depois de esfolado, é imprescindível extrair-lhe uma glândula de cheiro pestilencial, que se situa entre o ânus e a cauda, e depois mergulhá-lo devidamente esquartejado durante três ou quatro dias numa marinada à base de vinho tinto carrascão. Não obstante o mau cheiro que exala a sua tenebrosa glândula, o texugo compraz-se em lambê-la gulosamente... Gostos!...
Receita 2218 — Chanfana de texugo
Lombo de texugo, 1 kg
Marinada para caça, receita 232
Vinho tinto, 2 1/2 dl
Caldo de carne, 1/2 l
Toucinho fresco em tiras, 100 g
Cebolas em quartos, 2
Alhos espremidos, 2
Cravinhos pisados, 2
Salsa e Tomilho, de cada, 1 raminho
Louro, 1 folha
Salsa, pimenta, malagueta, farinha e água, q.b.
Acompanhamento: batatas cozidas
Corta-se o lombo em pedaços grandes, que se metem no frigorífico a macerar na marinada durante três dias, pelo menos, dando-lhes voltas. Escorrem-se, lardeiam-se com as tirar de toucinho e metem-se num tacho de barro com todos os restantes ingredientes. Tapa-se o tacho, colando-lhe a tampa com massa de farinha e água, e leva-se a forno moderado para cozer durante cerca de 2 horas. Destapa-se e apura-se sobre o lume."
À caçadeira, a quem chamava Perdigueiro, e aos perdigueiros-de-nariz-rachado, a quem os animais das redondezas chamavam Sacanas 1, 2 e 3, comprara-os há mais tempo. Restavam, assim, apenas algumas tocas, sempre escondidas entre os silvados, de onde outrora emanaram os doces aromas da fertilidade, esse cheiro a pêlo quente e corpo em ovulação que tão louco deixava o nosso antipático mustelídeo, que só de lembrar deixava fugir um gnarl e duas ou três fungadelas involuntárias. Um dia, perto da toca onde vivera Irina, a sua fuck buddy preferida, uma roliça e pestanuda bicha de focinho perpetuamente molhado (e como toda a gente sabe — pelo menos os texugos — essas são as melhores parideiras), que não só não sabia dizer não (na língua dos texugos um não é assim um rosnar mais agudo), como ainda o procurava na sua toca em dias de maior desejo (embora ele desconfiasse que isso se devia ao prestígio que tal acto lhe traria — afinal, toda a Natureza sabe que as fêmeas de qualquer mamífero substituem sempre a paixão que inevitavelmente perdem pelo materialismo que sempre amaram), sentiu um cheiro pungente. Acre. Assim daqueles que entra pelo focinho adentro e faz comichão ao pé dos olhos. Irreconhecível. Acicatado pela curiosidade e sem qualquer temor porque essa, a curiosidade, portanto, só matou gatos até agora, mas isso também o faz o Sousa Cornudo com a sua pick up Toyota 4WD a cada incursão à vila, aproximou-se, silencioso como uma cobra rateira igual àquela que uma vez apanhou a digerir Mário, o Musaranho, por baixo do armário da cozinha fabrico da IdEA, Forest Devastators TM, imagine-se o desplante. À medida que se acercava, tentando não restolhar as malvas e as serralhas secas do estio, o odor tornava-se cada vez mais forte, quase tão forte como quando Constança, a Texugo Betinha que vivia na Herdade da Comportinha, propriedade dos Bastilhas, estava saída. Mas diferente. Porque este era mau. Muito mau. Ao chegar à entrada, algumas ossadas de coelho (provavelmente de Leónidas, a Lebre, a quem o alvo rabicho já não via há mais de quinze dias, o que para um texugo equivale a quase um ano) a denunciar o óbvio. Mas Ramiro, como bom texugo que era (bom na medida em que tinha comportamentos naturais da espécie e não como Ui, o Ramiro é mesmo bom, assim, tipo gordalhufo frrsshhp que as fêmeas costumavam sussurrar, quando as havia), preferia sempre surpreender a ser surpreendido. Apressou-se, pois, a gritar um Ó da toca, por entre um grouf e um ronk, interjeições que denunciavam, em si, algum nervisismo. Aí é a saída, meu caro. Terás de dar a volta ao pinheiro para que encontres outro buraco, por entre as raízes, disse uma voz trémula, aguda e demoníaca. Algo irritante, também. Mas os texugos são bestas que se irritam facilmente. Contornou o pinheiro manso, o mesmo onde um dia amara Gertrudes, à bruta e por trás, posição que se atribui aos cães mas que é sempre do agrado de todos os quadrúpedes e cerca de 98% dos bípedes, com o seu espigão do amor que era assim tipo um bâton Rose Pink da Maybelline ao início mas que depois se tornava um Deep Purple ref.ª 348992 da Yves Saint Laurent, se os texugos soubessem o que é um bâton, e deu de caras com uma raposa. Ora, normalmente, e como toda a gente sabe, mesmo que seja um animal da cidade mas tenha dois dedos de testa ou saiba ler (ou ambos), os encontros entre o Meles meles e a Vulpes vulpes não são coisa agradável de se ver. Mas, neste caso, e sendo que estamos perante um Conto Tradicional Português by dIAZ, ou seja, uma coisa civilizada, o que se passou foi isto: Quererá porventura o amigo entrar na minha humilde habitação?, perguntou Carlos Vasco, a Raposa. Ramiro, que era animal naturalmente desconfiado, sentia-se estranhamente confortável ao pé deste canino exemplar de matreirice. Não sabia se era da luneta no olho esquerdo, se da pose senhorial, mas havia nobreza naquela criatura. E uma enorme cicatriz na pata dianteira direita, que deformara ligeiramente depois de sarada, deixando ali, bem presente, a pelada, testemunho de, provavelmente, coragem. Nobre. É isso. Deixe estar, eu estou bem. Está calor e ainda não perdi totalmente a minha pelagem de Inverno, sabe?, respondeu, o mais respeitosamente que conseguiu (e como era difícil para si), Ramiro. Trata-me por tu, meu caro. O meu nome é Carlos Vasco. Para ti é Cavé, e a raposa vermelha europeia assumiu toda a fidalguia ao sentar-se, patas dianteiras entre as traseiras, a volumosa cauda erguida ao longo de um dos flancos, uma passagem de língua pelas beiças e um ajuste, com a fina pata, da luneta no focinho. Ramiro estava fascinado. Gostas de ovos? A pergunta arrancou, violentamente, Ramiro daquela espécie de transe. Mas respondeu Claro que sim. Não conheço texugos que não gostem de ovos!, a peluda bicha replicou Muito bem, muito bem. Isto podia ser uma aliança estratégica sem par na história deste Montado. Ramiro franziu o sobrolho, o que, nos texugos, é sempre muito difícil e arrasta sempre a orelha para a expressão (não obstante, acentua-a) e indagou por sua vez O que queres propor, Cavé? Há riscos?, o raposo acendeu um cigarro de barba de milho, deu uma longa bafurada e sorriu Nada se faz sem riscos. E se sim, não tem a mesma piada. É por isso que somos animais, meu caro. Avaliamos os riscos mas só até a sobrevivência, a nossa e a dos nossos, estar perigada. Neste momento é o que está a acontecer. Os humanos e as suas casas aproximam-se cada vez mais, cruzamo-nos com eles muito mais vezes do que devíamos. Aprendemos a viver com eles e é chegada a hora de vivermos deles. Luís Vilaça tem uma rica capoeira onde te esperam muitos ovos, todos os dias. A única coisa que te peço é que, um dia por semana, me tragas uma franga. Não como carne desde a última lebre que apanhei, já lá vão três meses dos meus, um ano dos teus. Nesta altura já Ramiro se deitara no chão com as barbichas do maxilar inferior pousadas sobre ambas as patas dianteiras E o que farás em troca? Cavé expirou o fumo para o ar Distraio os Sacanas. Já não posso ir à capoeira. Conhecem-me o pivete a léguas. Usarei isso para distraí-los do teu cheiro, que também não é lá muito bom, diga-se! Ramiro sorriu com o elogiu e disse, em tom assumidamente grave Tudo bem gnarv, amanhã ronc à noite. Três meses dos nossos foi o tempo que demorou até que Ramiro tivesse sido esfolado, esquartejado e marinado durante três dias, os restos distribuídos por três Sacanas. Carlos Vasco, esse, não lhe valeu a segunda saída da toca, pormenor arquitectónico muito comum na espécie destinado a despistar o Bicho Homem, e jaz putrefacto ao lado da toca que foi outrora de Irina. Sem a cauda, que Luís Vilaça exibe agora na sua samarra coçada do tempo e solidão. Não admira. O homem tem cara de cavalo, é mau como as cobras e gordo que nem uma lontra, que os texugos já eram!
2 comentários:
Imagino que te deu muito gozo escrevê-lo, também a mim lê-lo.
Deu-me Xim Xenhora!
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