Brígida olha a porta de entrada do apartamento como um biólogo o aquário dos seus sonhos. Fixa os olhos, mortiços, na maçaneta. Às vezes numa ou noutra sombra visível através daquela pequena frincha em baixo, reveladora de um mundo que lhe é, dias a fio, vedado. A Alegoria do T3, se o Platão fosse um gajo moderno. Por vezes suspira. E sai Amor. Devoção. Dedicação. Fidelidade. Tudo exalado pelas narinas num equilíbrio quantitativo perfeito. Se, num dos ais, a narina esquerda larga 35% de Amor e a direita 65% de Fidelidade, poderá ter-se a certeza que, no próximo sopro, a Dedicação equilibrará a balança concedendo o devido dióxido de carbono à Devoção. E Saudade. Muita Saudade. A saída de Cássio para o trabalho deixa-lhe, a cada manhã, um nó no estômago. E a boca seca. O que resulta, invariavelmente, num fastio de dia inteiro. Sempre no sofá. Até que ele volte. Não controla os gemidos durante os primeiros dez minutos de separação. Um quase choro tão, mas tão angustiado que poderia jurar-se: Brígida teme o dia em que Cássio não volte. Coloca essa hipótese todas as auroras. E sofre diariamente a dor da separação. Mas quando ele chega, e até agora fê-lo todos os dias, às vezes o cheiro de outra ou mais que uma, não faz mal, inunda-se-lhe o coração de calor. De tons de girassol contra o céu de Verão. De sons de cem ribeiros entre mil aves canoras. De sabores a chocolate com banana e canela e mel. De... OLHA... Aí está ele, pensou. Ão ão, exclamou!
sexta-feira, julho 29, 2011
quarta-feira, julho 27, 2011
Os tEus cAbELos E tOdOs oS oUtrOs Céus da bOcA
Élvio vira-a sob o strob. Na noite anterior. Cinquenta e três
fotografias em apenas trinta e um segundos. Lembrava-se de cada uma. Todas
perfeitas. Com que forraria a parede da cozinha. Nesta ergue as mãos. Os dedos
ligeiramente flectidos. Como os de quem não quer agarrar nada nem ninguém.
Gente para quem tudo é mero digladiar pela razão. Pelo poder supremo que é não
deixar a legitimidade transpor a fronteira de si. Reside, aí, a derradeira
esperança de exorcizar um amor que foi tão intenso quanto agora é um resto de molho de tomate de uma refeição ultracongelada ressequido no prato. Posse como a que temos sobre o gato do vizinho. Aquele que
vem comer a nossa casa porque é bom. Sabemos que não é nosso. Mas fingimos que
sim. Um egoísmo transvestido. Cobiçoso capricho. Caprichoso desejo de nada.
Nesta rodou a cabeça. Ficou com os cabelos no ar. Como que congelados. Um
brilho intenso como o da primeira vez que a viu. Debaixo de um sol matinal a
entrar, ainda tímido, pela janela. Renascendo em fulgor ali, no desgrenhado
cocuruto. O cabelo dela. De cheiro a lençóis suados de afecto seu. Como o que
nunca dera a ninguém. Que ela deitou janela fora sem ver quem ia a passar.
Élvio não merecera nem o compartimento da reciclagem. Agora, sentado aos pés da
cama, olhando o espelho em frente, lembra-se apenas do strob recortando a
silhueta. Uma, duas, cinquenta e três vezes. De nada mais. Nem da primeira vez, a
paixão de um Universo Inteiro a conspirar por eles. Nem das lágrimas em excesso
de sal dos últimos tempos. Enfia a mão no fantoche que fizera para ela. Para
apontamentos de humor parvo, idiota. O melhor. Mas que faltava, agora. Tanto.
Baptizaram-no. Os dois. Como a um filho. Godofredo. Uma meia, duas bolas de
ping pong e um Magic Marker. Como aquele que o Vincent Vega pede à Jody, a
namorada do Lance, para poder desenhar a cruz que serve de mira à injecção da
Mia. Adrenalina. É isso. Olha-se ao espelho. Move os dedos. Faz uma voz aguda. A mexer os lábios. Não tem jeito para ventriloquista Que cara é essa? A
vida segue, pá. Só tens que fazer o que tens que fazer. Élvio vira a cara em
direcção a Godofredo. Olha de lado para o espelho certificando-se que a cena
fica bem. Responde Vai para o caralho!
terça-feira, julho 26, 2011
O cÉu dA bOcA e cAdA 1 doS TeUs cAbeLOS
Bráulio apertou a cebola com jeitos de Chef. Depois mirou-a como se fosse a última. A derradeira cebola roxa do Planeta Terra. Depois desta mais ninguém chorará, pensou. A luz filtrada pelo estore dava à cozinha um ar de cena de sexo num blockbuster romântico dos anos 80. Com Banda Sonora da Celine Dion. Ou dos Roxette. Cortou tudo em fatias longitudinais. Muito finas. Depois transversou a faca. Voltou a cortar. Quando o vegetal era um monte de cubos quase transparentes, deitou-o sobre o azeite fervente no tacho. Havia poesia naquele gesto. Mas não verteu uma só lágrima. É verdade que há pessoas que matam baleias, pai? ouviu atrás de si. Uma pequena figura com um brinquedo pesando em cada uma das mãos. Os braços ao longo do corpo como que suplicando uma resposta negativa. Os cantos da boca em direcção ao queixo. Costumavam estar de orelha a orelha. Pensou quanto valeria uma mentira destas. E decidiu comprar, ali, uma meia-verdade. Que são mentiras em saldos É, filho. Mas a polícia há-de apanhá-los a todos. Um a um. O menino fitou, por segundos, uma das rodas do carrinho que tinha numa das mãos. Como quando tu foste multado por falar ao telemóvel? A surpresa serviu de gatilho. E Bráulio disparou sem pensar Exactamente! Vês? Eles vêem tudo! A criança encostou o queixo no peito, inverteu o sentido e deixou a divisão, exclamando Pois... mas tu continuas falar ao telemóvel enquanto conduzes. Não aprendeste a lição. E eu também estou farto de te dizer que não gosto de cebola na minha comida. O homem suspirou. Um longo e demorado suspiro. Como uma grande Baleia Azul vinda à superfície em festim de cril. Só depois chorou. O arpão do que poderia ter sido cravado fundo nas costas...
segunda-feira, julho 25, 2011
Training 4 a BiTTER LIFE
Ordonho sentou-se na pedra mais lisa, cruzou as pernas e reparou numa pequena nódoa, já solidificada, na ganga das calças. Retirou-a com a unha do indicador direito, debaixo desta com a do esquerdo e só então olhou atentamente os sinais de fumo, cofiando a barba e oscilando o pé suspenso. Apesar de uma forte brisa, que tornava quase ilegível aquele tipo de escrita, endémica de latitudes mais amenas, pareceu-lhe decifrar Jantar amanhã em nossa casa, traz um monocasta Bical porque o petisco é leitão. Leu-o em voz alta. E sorriu. É então que sente a mão de Sancha no ombro, depois o seu hálito quente sussurrando-lhe ao ouvido Percebeste mal. O vento esborrata. Estão a dizer que este é, para ti, o fim da linha, meu velho... Acabou. Sandoval, a balofa cadela, lambeu-lhe a mão, cada teta uma dedeira de tanto ter parido. Fora bom. Fora inesquecivelmente bom. Agora já não. Retirou outra nódoa, agora com a unha o indicador esquerdo e, debaixo desta, com a do direito...
quinta-feira, julho 21, 2011
Short Coetze
Um manto escuro e compacto. Como cinza de
vulcão. Não que alguma vez tivesse estado perto de um. Mas imaginava que seria
assim. Uma massa de sombra cedendo um pouco da sua treva por onde passa. Densa
e impenetrável capa cobrindo tudo, todos, eu, tu, ele, lentamente, nós, vós, eles, mais e mais, imperativo, avança da costa para o
interior, implacável, já é noite nas primeiras dunas, inelutável, agora nas hortas. Faz frio só de
olhar. Jorge a tudo vê, de cima do monte. Dá mais uma dentada no papo seco onde
a mulher enfiara, sem amor, carinho ou consideração, duas ou três fatias de
Paio tipo York. Depois exclama Vai chover, ó
caralho!
quarta-feira, julho 20, 2011
Guião
Cristóvão plantou os cotovelos na mesa. Sentiu a humidade atravessar o tecido da camisa. Café | cerveja | vinho | gordura | bah! Numa situação normal sentiria asco. Não agora. Que a tinha à frente. Para
olhar sem peias. Pupilas nas córneas. Por entre o fumo do seu próprio cigarro. Um coto entre dedos. Tingidos de amarelo. Uma figura celeste, luminosa, no centro de um tasco esconso e sombrio. Como uma aparição só para si. Sempre foste um
tremendo egoísta, meu biltre, ouvira tantas vezes. Se fosse cientista, diria
que Ana ausentava a gravidade em roda. Só por ficar com algumas madeixas sobre
os ombros quando virava a cabeça em busca do autor do sonoro arroto. Ou por
passar a língua nos lábios de quando em vez, quebrando finos fios de saliva. Ou só por respirar, de 2 em 2 segundos, demorando as
expirações exactamente mais 4,2 milésimos que as inspirações, havia calculado,
enchendo ambas as faces de uma folha A5 quadriculada de contas insanas. Como
era apenas um qualquer, daqueles que se vêem, todas as manhãs, olhar apartado
daqui, na carruagem do metro, experimentador de mil artes sem possuir
especial qualidade em nenhuma delas, um amador de tudo, oh mediocridade, sorriu
apenas. Um longo, demorado e incontrolável sorriso a expiar pecados antigos,
imemoráveis, que já não estavam, há muito, neste plano e chegava a duvidar
terem sido, afinal, os seus. São Cristóvão era um barqueiro, avançou ela. Ele
baixou os olhos em direcção à chávena de onde tentava tirar o café ressequido
dos rebordos com a colher. Ela prosseguiu Um dia transportou um menino entre as margens. A
meio do percurso reparou que era cada vez mais difícil. Disse à criança "pesas
como se carregasses o peso de todo o mundo aos ombros". O menino respondeu "E
tu não só me carregas a mim como a quem o criou. A partir de agora chamar-te-ás
Cristóvão, ou aquele que transporta Cristo" e desapareceu. Voltou a olhá-la
nos olhos, cemisserrou-os e gaguejou E a barca... Ficou mais leve?, Ela suspirou, baralhando-lhe as contas da folha A5 em papel quadriculado. Não interessa para a
história. São Cristóvão ficou para sempre o santo dos viajantes, dos
caminheiros, dos guias. É só isso. Os olhos dele abriram um pouco mais. Só um pouco mais Era isso que me querias dizer? Depois de
tanto tempo sem nos vermos?, e agora era ela que baixava o olhar, os cotovelos
dele apoiados num reflexo de unto sobre a mesa, Vou-me embora, Cristóvão.
Desta vez, o único Cristóvão que levarei comigo é o outro, o da barca. Ele pensou que choraria. Mais. Ela também. Ao balcão alguém pediu a conta da mesa
Daquele senhor que acabou de vomitar, é melhor levar a esfregona. Ela levanta-se e estende um lenço de
papel àquele farrapo do que fora um dia, um homem admirável, possante,
portentoso, viril, inteligente e luminoso que agora retirava dos cantos da boca
restos de algo indecifrável. E indigesto. Ele ainda a viu colocar a embalagem no bolso do casaco. Renova. Depois seguiu-lhe os passos até ao balcão,
onde disse Vamos Pedro... Meu portador das chaves do Céu!
segunda-feira, julho 18, 2011
The Great Gets By, F. dIAZ Fitzgerald
E o óbvio assomou como o vento de final de dia
num salão virado a norte, janelas abertas e cortinas tão longas que voam como
se quisessem mostrar que tudo ali dentro está suspenso no ar e prestes a cair,
da jarra de porcelana às tantas músicas que eram, até hoje, só nossas! Com
estertor, quebrar-me-ei em mil trezentos e quarenta e nove cacos espalhados
pelo soalho envelhecido. Mas já não estranharei que tu, com a mania das
limpezas, demores tanto a apanhar o lixo que eu fiz...
terça-feira, julho 12, 2011
E O TEXUGO VIU A RAPOSA, ESSE DEMÓNIO LARANJA, in Contos Tradicionais Portugueses by dIAZ
Ramiro, o Texugo, era um plantígrado normal. Para texugo, pelo menos, não estava nada mal. Era gordo, pois. Daí o zoomorfismo Gordo que nem um texugo, expressão tão amplamente espalhada pelo território luso quanto vulgar já foram, em tempos, os avistamentos, de Norte a Sul, do Meles taxus (ou Meles meles). Agora não. São magros tempos para o balofo quadrúpede. Ramiro (Ti Ramiro, como o tratavam Júlio, o Ouriço e Tó Quim, o Ginete, amigos de comezainas no pomar), conhecido pelo seu temperamento, era porém um mamífero feliz. Tinha uma toca bem mobilada, com uma mesa de jantar da melhor nogueira da Quinta do Bacelar, propriedade dos Quintela, uma confortável mobília de sala em carvalho maciço (e não laminado, como Olavo, o Furão, tinha no seu claustrofóbico buraco T0) e uma cama em pinho, madeira sem qualquer nobreza não tivesse sido manufacturada no Atelier do Romão, o Castor, solícito marceneiro da Ribeira das Moças, lá para os lados da Charneca da Anta, com acabamentos preciosos assinados pelo Térmites Garbosas, Gabinete de Decoração S.A. sediado no Quartel dos Bombeiros Voluntários de Folgosinho. Ramiro fora, em tempos, o mais solicitado por todas as fêmeas do Vale. Menos a Edite, que era frígida. Já não. Já não era solicitado, portanto, porque a Edite, sabe dEUS dos Texugos onde andará essa magra amostra, continuará frígida. Não que as suas generosas badanas de gordura nos flancos, ao longo das riscas laterais, não fossem as mesmas (são como os abdominais e bíceps e "inteligência" para as fêmeas humanas), mas porque Fora Um Ar Que Se Lhes Dera aos exemplares da espécie. Tudo porque Luís Vilaça, homem portentoso, de uma só sobrancelha a esconder uns olhos muito pequenos, virtuoso cobridoiro de casadas insatisfeitas e meninos de buço, solitário caseiro da vasta propriedade Monte da Arrufada, comprara O Livro de Pantagruel:
(...) "não é uma captura comum e certamente por esse motivo escasseiam as maneiras de cozinhá-lo. Depois de esfolado, é imprescindível extrair-lhe uma glândula de cheiro pestilencial, que se situa entre o ânus e a cauda, e depois mergulhá-lo devidamente esquartejado durante três ou quatro dias numa marinada à base de vinho tinto carrascão. Não obstante o mau cheiro que exala a sua tenebrosa glândula, o texugo compraz-se em lambê-la gulosamente... Gostos!...
Receita 2218 — Chanfana de texugo
Lombo de texugo, 1 kg
Marinada para caça, receita 232
Vinho tinto, 2 1/2 dl
Caldo de carne, 1/2 l
Toucinho fresco em tiras, 100 g
Cebolas em quartos, 2
Alhos espremidos, 2
Cravinhos pisados, 2
Salsa e Tomilho, de cada, 1 raminho
Louro, 1 folha
Salsa, pimenta, malagueta, farinha e água, q.b.
Acompanhamento: batatas cozidas
Corta-se o lombo em pedaços grandes, que se metem no frigorífico a macerar na marinada durante três dias, pelo menos, dando-lhes voltas. Escorrem-se, lardeiam-se com as tirar de toucinho e metem-se num tacho de barro com todos os restantes ingredientes. Tapa-se o tacho, colando-lhe a tampa com massa de farinha e água, e leva-se a forno moderado para cozer durante cerca de 2 horas. Destapa-se e apura-se sobre o lume."
À caçadeira, a quem chamava Perdigueiro, e aos perdigueiros-de-nariz-rachado, a quem os animais das redondezas chamavam Sacanas 1, 2 e 3, comprara-os há mais tempo. Restavam, assim, apenas algumas tocas, sempre escondidas entre os silvados, de onde outrora emanaram os doces aromas da fertilidade, esse cheiro a pêlo quente e corpo em ovulação que tão louco deixava o nosso antipático mustelídeo, que só de lembrar deixava fugir um gnarl e duas ou três fungadelas involuntárias. Um dia, perto da toca onde vivera Irina, a sua fuck buddy preferida, uma roliça e pestanuda bicha de focinho perpetuamente molhado (e como toda a gente sabe — pelo menos os texugos — essas são as melhores parideiras), que não só não sabia dizer não (na língua dos texugos um não é assim um rosnar mais agudo), como ainda o procurava na sua toca em dias de maior desejo (embora ele desconfiasse que isso se devia ao prestígio que tal acto lhe traria — afinal, toda a Natureza sabe que as fêmeas de qualquer mamífero substituem sempre a paixão que inevitavelmente perdem pelo materialismo que sempre amaram), sentiu um cheiro pungente. Acre. Assim daqueles que entra pelo focinho adentro e faz comichão ao pé dos olhos. Irreconhecível. Acicatado pela curiosidade e sem qualquer temor porque essa, a curiosidade, portanto, só matou gatos até agora, mas isso também o faz o Sousa Cornudo com a sua pick up Toyota 4WD a cada incursão à vila, aproximou-se, silencioso como uma cobra rateira igual àquela que uma vez apanhou a digerir Mário, o Musaranho, por baixo do armário da cozinha fabrico da IdEA, Forest Devastators TM, imagine-se o desplante. À medida que se acercava, tentando não restolhar as malvas e as serralhas secas do estio, o odor tornava-se cada vez mais forte, quase tão forte como quando Constança, a Texugo Betinha que vivia na Herdade da Comportinha, propriedade dos Bastilhas, estava saída. Mas diferente. Porque este era mau. Muito mau. Ao chegar à entrada, algumas ossadas de coelho (provavelmente de Leónidas, a Lebre, a quem o alvo rabicho já não via há mais de quinze dias, o que para um texugo equivale a quase um ano) a denunciar o óbvio. Mas Ramiro, como bom texugo que era (bom na medida em que tinha comportamentos naturais da espécie e não como Ui, o Ramiro é mesmo bom, assim, tipo gordalhufo frrsshhp que as fêmeas costumavam sussurrar, quando as havia), preferia sempre surpreender a ser surpreendido. Apressou-se, pois, a gritar um Ó da toca, por entre um grouf e um ronk, interjeições que denunciavam, em si, algum nervisismo. Aí é a saída, meu caro. Terás de dar a volta ao pinheiro para que encontres outro buraco, por entre as raízes, disse uma voz trémula, aguda e demoníaca. Algo irritante, também. Mas os texugos são bestas que se irritam facilmente. Contornou o pinheiro manso, o mesmo onde um dia amara Gertrudes, à bruta e por trás, posição que se atribui aos cães mas que é sempre do agrado de todos os quadrúpedes e cerca de 98% dos bípedes, com o seu espigão do amor que era assim tipo um bâton Rose Pink da Maybelline ao início mas que depois se tornava um Deep Purple ref.ª 348992 da Yves Saint Laurent, se os texugos soubessem o que é um bâton, e deu de caras com uma raposa. Ora, normalmente, e como toda a gente sabe, mesmo que seja um animal da cidade mas tenha dois dedos de testa ou saiba ler (ou ambos), os encontros entre o Meles meles e a Vulpes vulpes não são coisa agradável de se ver. Mas, neste caso, e sendo que estamos perante um Conto Tradicional Português by dIAZ, ou seja, uma coisa civilizada, o que se passou foi isto: Quererá porventura o amigo entrar na minha humilde habitação?, perguntou Carlos Vasco, a Raposa. Ramiro, que era animal naturalmente desconfiado, sentia-se estranhamente confortável ao pé deste canino exemplar de matreirice. Não sabia se era da luneta no olho esquerdo, se da pose senhorial, mas havia nobreza naquela criatura. E uma enorme cicatriz na pata dianteira direita, que deformara ligeiramente depois de sarada, deixando ali, bem presente, a pelada, testemunho de, provavelmente, coragem. Nobre. É isso. Deixe estar, eu estou bem. Está calor e ainda não perdi totalmente a minha pelagem de Inverno, sabe?, respondeu, o mais respeitosamente que conseguiu (e como era difícil para si), Ramiro. Trata-me por tu, meu caro. O meu nome é Carlos Vasco. Para ti é Cavé, e a raposa vermelha europeia assumiu toda a fidalguia ao sentar-se, patas dianteiras entre as traseiras, a volumosa cauda erguida ao longo de um dos flancos, uma passagem de língua pelas beiças e um ajuste, com a fina pata, da luneta no focinho. Ramiro estava fascinado. Gostas de ovos? A pergunta arrancou, violentamente, Ramiro daquela espécie de transe. Mas respondeu Claro que sim. Não conheço texugos que não gostem de ovos!, a peluda bicha replicou Muito bem, muito bem. Isto podia ser uma aliança estratégica sem par na história deste Montado. Ramiro franziu o sobrolho, o que, nos texugos, é sempre muito difícil e arrasta sempre a orelha para a expressão (não obstante, acentua-a) e indagou por sua vez O que queres propor, Cavé? Há riscos?, o raposo acendeu um cigarro de barba de milho, deu uma longa bafurada e sorriu Nada se faz sem riscos. E se sim, não tem a mesma piada. É por isso que somos animais, meu caro. Avaliamos os riscos mas só até a sobrevivência, a nossa e a dos nossos, estar perigada. Neste momento é o que está a acontecer. Os humanos e as suas casas aproximam-se cada vez mais, cruzamo-nos com eles muito mais vezes do que devíamos. Aprendemos a viver com eles e é chegada a hora de vivermos deles. Luís Vilaça tem uma rica capoeira onde te esperam muitos ovos, todos os dias. A única coisa que te peço é que, um dia por semana, me tragas uma franga. Não como carne desde a última lebre que apanhei, já lá vão três meses dos meus, um ano dos teus. Nesta altura já Ramiro se deitara no chão com as barbichas do maxilar inferior pousadas sobre ambas as patas dianteiras E o que farás em troca? Cavé expirou o fumo para o ar Distraio os Sacanas. Já não posso ir à capoeira. Conhecem-me o pivete a léguas. Usarei isso para distraí-los do teu cheiro, que também não é lá muito bom, diga-se! Ramiro sorriu com o elogiu e disse, em tom assumidamente grave Tudo bem gnarv, amanhã ronc à noite. Três meses dos nossos foi o tempo que demorou até que Ramiro tivesse sido esfolado, esquartejado e marinado durante três dias, os restos distribuídos por três Sacanas. Carlos Vasco, esse, não lhe valeu a segunda saída da toca, pormenor arquitectónico muito comum na espécie destinado a despistar o Bicho Homem, e jaz putrefacto ao lado da toca que foi outrora de Irina. Sem a cauda, que Luís Vilaça exibe agora na sua samarra coçada do tempo e solidão. Não admira. O homem tem cara de cavalo, é mau como as cobras e gordo que nem uma lontra, que os texugos já eram!
(...) "não é uma captura comum e certamente por esse motivo escasseiam as maneiras de cozinhá-lo. Depois de esfolado, é imprescindível extrair-lhe uma glândula de cheiro pestilencial, que se situa entre o ânus e a cauda, e depois mergulhá-lo devidamente esquartejado durante três ou quatro dias numa marinada à base de vinho tinto carrascão. Não obstante o mau cheiro que exala a sua tenebrosa glândula, o texugo compraz-se em lambê-la gulosamente... Gostos!...
Receita 2218 — Chanfana de texugo
Lombo de texugo, 1 kg
Marinada para caça, receita 232
Vinho tinto, 2 1/2 dl
Caldo de carne, 1/2 l
Toucinho fresco em tiras, 100 g
Cebolas em quartos, 2
Alhos espremidos, 2
Cravinhos pisados, 2
Salsa e Tomilho, de cada, 1 raminho
Louro, 1 folha
Salsa, pimenta, malagueta, farinha e água, q.b.
Acompanhamento: batatas cozidas
Corta-se o lombo em pedaços grandes, que se metem no frigorífico a macerar na marinada durante três dias, pelo menos, dando-lhes voltas. Escorrem-se, lardeiam-se com as tirar de toucinho e metem-se num tacho de barro com todos os restantes ingredientes. Tapa-se o tacho, colando-lhe a tampa com massa de farinha e água, e leva-se a forno moderado para cozer durante cerca de 2 horas. Destapa-se e apura-se sobre o lume."
À caçadeira, a quem chamava Perdigueiro, e aos perdigueiros-de-nariz-rachado, a quem os animais das redondezas chamavam Sacanas 1, 2 e 3, comprara-os há mais tempo. Restavam, assim, apenas algumas tocas, sempre escondidas entre os silvados, de onde outrora emanaram os doces aromas da fertilidade, esse cheiro a pêlo quente e corpo em ovulação que tão louco deixava o nosso antipático mustelídeo, que só de lembrar deixava fugir um gnarl e duas ou três fungadelas involuntárias. Um dia, perto da toca onde vivera Irina, a sua fuck buddy preferida, uma roliça e pestanuda bicha de focinho perpetuamente molhado (e como toda a gente sabe — pelo menos os texugos — essas são as melhores parideiras), que não só não sabia dizer não (na língua dos texugos um não é assim um rosnar mais agudo), como ainda o procurava na sua toca em dias de maior desejo (embora ele desconfiasse que isso se devia ao prestígio que tal acto lhe traria — afinal, toda a Natureza sabe que as fêmeas de qualquer mamífero substituem sempre a paixão que inevitavelmente perdem pelo materialismo que sempre amaram), sentiu um cheiro pungente. Acre. Assim daqueles que entra pelo focinho adentro e faz comichão ao pé dos olhos. Irreconhecível. Acicatado pela curiosidade e sem qualquer temor porque essa, a curiosidade, portanto, só matou gatos até agora, mas isso também o faz o Sousa Cornudo com a sua pick up Toyota 4WD a cada incursão à vila, aproximou-se, silencioso como uma cobra rateira igual àquela que uma vez apanhou a digerir Mário, o Musaranho, por baixo do armário da cozinha fabrico da IdEA, Forest Devastators TM, imagine-se o desplante. À medida que se acercava, tentando não restolhar as malvas e as serralhas secas do estio, o odor tornava-se cada vez mais forte, quase tão forte como quando Constança, a Texugo Betinha que vivia na Herdade da Comportinha, propriedade dos Bastilhas, estava saída. Mas diferente. Porque este era mau. Muito mau. Ao chegar à entrada, algumas ossadas de coelho (provavelmente de Leónidas, a Lebre, a quem o alvo rabicho já não via há mais de quinze dias, o que para um texugo equivale a quase um ano) a denunciar o óbvio. Mas Ramiro, como bom texugo que era (bom na medida em que tinha comportamentos naturais da espécie e não como Ui, o Ramiro é mesmo bom, assim, tipo gordalhufo frrsshhp que as fêmeas costumavam sussurrar, quando as havia), preferia sempre surpreender a ser surpreendido. Apressou-se, pois, a gritar um Ó da toca, por entre um grouf e um ronk, interjeições que denunciavam, em si, algum nervisismo. Aí é a saída, meu caro. Terás de dar a volta ao pinheiro para que encontres outro buraco, por entre as raízes, disse uma voz trémula, aguda e demoníaca. Algo irritante, também. Mas os texugos são bestas que se irritam facilmente. Contornou o pinheiro manso, o mesmo onde um dia amara Gertrudes, à bruta e por trás, posição que se atribui aos cães mas que é sempre do agrado de todos os quadrúpedes e cerca de 98% dos bípedes, com o seu espigão do amor que era assim tipo um bâton Rose Pink da Maybelline ao início mas que depois se tornava um Deep Purple ref.ª 348992 da Yves Saint Laurent, se os texugos soubessem o que é um bâton, e deu de caras com uma raposa. Ora, normalmente, e como toda a gente sabe, mesmo que seja um animal da cidade mas tenha dois dedos de testa ou saiba ler (ou ambos), os encontros entre o Meles meles e a Vulpes vulpes não são coisa agradável de se ver. Mas, neste caso, e sendo que estamos perante um Conto Tradicional Português by dIAZ, ou seja, uma coisa civilizada, o que se passou foi isto: Quererá porventura o amigo entrar na minha humilde habitação?, perguntou Carlos Vasco, a Raposa. Ramiro, que era animal naturalmente desconfiado, sentia-se estranhamente confortável ao pé deste canino exemplar de matreirice. Não sabia se era da luneta no olho esquerdo, se da pose senhorial, mas havia nobreza naquela criatura. E uma enorme cicatriz na pata dianteira direita, que deformara ligeiramente depois de sarada, deixando ali, bem presente, a pelada, testemunho de, provavelmente, coragem. Nobre. É isso. Deixe estar, eu estou bem. Está calor e ainda não perdi totalmente a minha pelagem de Inverno, sabe?, respondeu, o mais respeitosamente que conseguiu (e como era difícil para si), Ramiro. Trata-me por tu, meu caro. O meu nome é Carlos Vasco. Para ti é Cavé, e a raposa vermelha europeia assumiu toda a fidalguia ao sentar-se, patas dianteiras entre as traseiras, a volumosa cauda erguida ao longo de um dos flancos, uma passagem de língua pelas beiças e um ajuste, com a fina pata, da luneta no focinho. Ramiro estava fascinado. Gostas de ovos? A pergunta arrancou, violentamente, Ramiro daquela espécie de transe. Mas respondeu Claro que sim. Não conheço texugos que não gostem de ovos!, a peluda bicha replicou Muito bem, muito bem. Isto podia ser uma aliança estratégica sem par na história deste Montado. Ramiro franziu o sobrolho, o que, nos texugos, é sempre muito difícil e arrasta sempre a orelha para a expressão (não obstante, acentua-a) e indagou por sua vez O que queres propor, Cavé? Há riscos?, o raposo acendeu um cigarro de barba de milho, deu uma longa bafurada e sorriu Nada se faz sem riscos. E se sim, não tem a mesma piada. É por isso que somos animais, meu caro. Avaliamos os riscos mas só até a sobrevivência, a nossa e a dos nossos, estar perigada. Neste momento é o que está a acontecer. Os humanos e as suas casas aproximam-se cada vez mais, cruzamo-nos com eles muito mais vezes do que devíamos. Aprendemos a viver com eles e é chegada a hora de vivermos deles. Luís Vilaça tem uma rica capoeira onde te esperam muitos ovos, todos os dias. A única coisa que te peço é que, um dia por semana, me tragas uma franga. Não como carne desde a última lebre que apanhei, já lá vão três meses dos meus, um ano dos teus. Nesta altura já Ramiro se deitara no chão com as barbichas do maxilar inferior pousadas sobre ambas as patas dianteiras E o que farás em troca? Cavé expirou o fumo para o ar Distraio os Sacanas. Já não posso ir à capoeira. Conhecem-me o pivete a léguas. Usarei isso para distraí-los do teu cheiro, que também não é lá muito bom, diga-se! Ramiro sorriu com o elogiu e disse, em tom assumidamente grave Tudo bem gnarv, amanhã ronc à noite. Três meses dos nossos foi o tempo que demorou até que Ramiro tivesse sido esfolado, esquartejado e marinado durante três dias, os restos distribuídos por três Sacanas. Carlos Vasco, esse, não lhe valeu a segunda saída da toca, pormenor arquitectónico muito comum na espécie destinado a despistar o Bicho Homem, e jaz putrefacto ao lado da toca que foi outrora de Irina. Sem a cauda, que Luís Vilaça exibe agora na sua samarra coçada do tempo e solidão. Não admira. O homem tem cara de cavalo, é mau como as cobras e gordo que nem uma lontra, que os texugos já eram!
quinta-feira, julho 07, 2011
10 dIAZ to noWHERE - Day 10
Quero que me chames Pastelinho de Tentúgal e me comas de uma só dentada como se eu fosse de Belém...
quarta-feira, julho 06, 2011
10 dIAZ to noWHERE - Day 9
Quero ir contigo comprar cinco quilos de arroz basmati ao supermercado Coentrolis e entrar no parque de estacionamento do Martim Moniz para buzinar AMO-TE em código morse que é assim .- -- --- -....- - . e ver nos teus olhos que isso significa algo e não que é só mais uma daquelas coisas que se dizem como quem chama Amor Em Tempos de Cólera ao romance que escreveu quando o que o García Márquez não sabia é que o Amor é Em Tempos de Crise...
terça-feira, julho 05, 2011
10 dIAZ to noWHERE - Day 8
Quero atar uma etiqueta com a inscrição FAZES-ME VOAR na pata de cada uma das crias de todos os ninhos de andorinha da praça para que a cada entardecer do ano que vem não te restem quaisquer dúvidas...
segunda-feira, julho 04, 2011
10 dIAZ to noWHERE - Day 7
Quero tatuar uma boca igual à tua na parte de trás dos teus joelhos para que ao seguir-te pareça que estás a dizer "amo-te" a cada passo...
domingo, julho 03, 2011
10 dIAZ to noWHERE - Day 6
Quero colher num boião tantas lágrimas de felicidades tuas que um dia cheguem para cozer percebes a acompanhar com Alvarinho gelado...
sábado, julho 02, 2011
10 dIAZ to noWHERE - Day 5
Quero ir contigo ao restaurante mais caro de Lisboa e esperar pela sobremesa para fazermos uma guerra de tremoços que levarás na tua mala...
sexta-feira, julho 01, 2011
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