sábado, agosto 21, 2010

a mArGeM sUL eStÁ a MoRrEr...

Ficou-me, de um outro tempo, esta coisa do Sábado de manhã. Hoje, vou ao mercado com Mariachito, desejando, veladamente, ter uma vida que me permitisse fazê-lo diariamente. Ontem, que era o tal outro tempo, ia, de bicicleta, buscar leite à vacaria e pão a um forno a sério numa vivenda que ficava mesmo ao lado da Bruxa, cujos clientes assustávamos, a altas horas da noite, agarrando-lhes os pés naquele espacinho por baixo da chapa da paragem de autocarros onde aguardavam o 23 das 00h20. Entre aquela e a minha casa, uma floresta de pinheiro manso, que fazia de volta, o mais rápido que pudesse, sem parar na Casa da Árvore, para ainda ver a manteiga derreter sobre a primeira fatia de casqueiro. Mas isto era, não sei se já o referi, ao Sábado. E só de manhã. O quotidiano de todos os outros dias era igualmente campónio. Difícil de acreditar hoje, olhando para os mesmos sítios. O olival onde os gaios nidificavam, a floresta de sobreiros, as quintas de dadivosos pomares guardados por perdigueiros de nariz rachado, os exactos sítios onde havia tocas de ouriço, de lagarto e de coelho, ou ninhos de melro, de pintassilgo e de rabiruivo. 
É claro que, mesmo para uma criança como eu, muito deste lugar, Cerieira, Sobreda de Caparica, estava nas gentes. E está.
No pastor que, com o seu rebanho, guiado por um enérgico podengo, passava, diariamente, pela minha rua e, pois, ao Sábado de manhã, entregava oito queijos frescos às sábias mãos da minha mãe, que já haviam feito o doce de tomate que casava, por amor, com aqueles. 
No louco que o ficou por uma mulher e, sorte malvada e mais que muita, acabou com um couto no lugar do braço porque o burro o arrancou. Ainda hoje se passeia, sempre à pressa, a falarejar sozinho, pelos mesmos trajectos. 
No velhote que nunca foi visto sem o seu rafeiro. Quando aquele morreu, este durou uma semana, se tanto. Deixou-se ir, de desgosto canino, que eu pensava, até ali, não ser igual ao nosso.
Na Ti Helena que me recebia sempre de braços abertos, num deles um saco de damascos e figos, noutro uma cesta de ovos, os mesmos braços onde morreu, disse-mo tantas vezes, Catarina Eufémia, numa carregada pronúncia que trouxera das searas de Baleizão para aqui. 
Na casa em frente ainda hoje se vende gás. Do lado de fora do muro, à sombra de um frondoso diospireiro, uma fila de botijas amarelas, presas por uma corrente, remete esta terra para um tempo que já não é. E era sempre eu que ia, com um meio de transporte engenhosamente inventado pelo melhor marceneiro do mundo, o meu tio Tói, e que fazia a inveja de outros clientes que usavam um vulgar carro-de-mão, buscar o gás dos meus pais. Entrava, à direita sempre o mesmo rafeiro, à esquerda o poço e alguns canteiros de imprescindíveis aromas sulistas. Recebia-me sempre a mesma simpatia de Hermínia e o largo sorriso e suave aceno de Ti Graça. Ti Hermínia saía de casa ainda a mastigar porque, a maior parte das vezes, eu interrompia a bucha (vá-se lá saber porquê, o gás acabava sempre à hora de almoço). Das últimas vezes, entregava-me só a chave, incapaz de maiores esforços e exclamando Estes olhos já nã sã de fiári. Nunca, de fedelho a hoje, em qualquer circustância ou por razão alguma recebi outra coisa daquela gente que não fossem sorrisos, beijinhos e saudações efusivas. Mudei de morada e, a cada retorno, esse passado feito presente. Sempre. Ah, é o mê Nuno da Natália! Ti Graça, esse, era o maior. Digo-o porque era um daqueles velhotes com os quais é impossível antipatizar. A não ser, claro, que se seja um grande estafermo! Sempre na sua pasteleira Esmaltina impecavelmente estimada (porque era, de facto, o seu meio de transporte), molas da roupa por fora da baínha das calças de fazenda, impedindo-as de chegar ao óleo da corrente, samarra e chapéu preto tipicamente alentejano, os olhos esfumados dos muitos anos e a surdez, sempre presente desde que o conheci, Ti Graça tinha o sorriso de quem não deve nem teme, o aceno de uma educação de outros tempos, a candura de quem trocou um campo mais longínquo por outro aqui ao lado. Lembro-me de quase tudo o que conversei com ele, eu quase a gritar, ele sempre a ouvir, descascando um pêro com a navalhinha umas vezes, outras apenas descendo do selim da bicicleta. Lembro-me de quase todos os sítios onde me cruzei com ele, de menino a homem feito, sempre o aceno pronto, sempre o sorriso. Lembro-me de ter pensado, um dia, se tanta humildade transparecida poderia deixar que alguém exclamasse, um dia, Que Grande Homem Que Foi. Eu faria-o, sem problema, só por ver tanto Alentejo num só corpo, que só a idade começou a vergar. Essa altivez que ninguém precisa de apregoar. Vê-se. Lembro-me do seu rosto e da placidez do mesmo, o que, assumo, me é difícil com outros. Mas difícil, mesmo, é imaginar a rua transversal à dos meus pais, ou mesmo toda a Cerieira, sem ele. Para mim, ti Graça não representava apenas um lugar. Era, todo ele, um outro tempo. Bem melhor. Mas que já não volta. Ti Graça morreu ontem. E Que Grande Homem Que Foi!



3 comentários:

Pedro Monteiro disse...

Parabéns a ti Nuno pela classe demonstrada e pela relevância que deste a esse grande homen que o foi Ti Graça e que a todos deixa saudade. Não vou deixar de revelar que me emocionei. Abraço amigo...

Cátia e Gabriela disse...

Nuno...as lágrimas caem-me pelo rosto abaixo...obrigada pela homenagem ao meu querido avô...obrigada pelas lindas palavras e pela tua forma linda de escrever! Amei...

El Mariachi disse...

Importante MESMO é que digas, um dia, à Gabriela, quem foi Ti Graça...