quarta-feira, agosto 25, 2010

Nem Queria Acreditar

É daquelas frases que me fazem sempre voltar atrás. Às outras pessoas isso acontece, geralmente, com Saramago. Talvez um ou outro Gabriel García Marquez, Lobo Antunes ou Kafka. A mim não. Mas um aparentemente inocente Nem Queria Acreditar faz-me confusão. Arrepia-me cada um dos meus longos e, felizmente, lisos pêlos do antebraço, aquela parte que envolve o rádio e o cúbito. Talvez até me arrepie cada um dos meus cabelos. Que são muitos, também felizmente. Por enquanto. Era-me inacreditável. Seria uma hipótese. E para dizer Seria Uma Hipótese também não foi preciso escrever Era Uma Possibilidade Que Se Afigurava, certo? Toda a gente percebeu, é simples, curto e grosso, como supostamente "elas gostam mais", assim como dos carecas, ou lá o que é, má sorte a minha, que tenho cabelo de chinês. Ou apenas Inacreditavelmente. Um advérbio de modo é sempre algo com alguma classe. Dá nível à coisa. É como o socorro prestado por um atempado Portanto a quem não tem absolutamente nada para dizer. É quase tão mágico como era o gerúndio antes das telenovelas brasileiras. Agora ninguém diz, quando recebe uma chamada, Ligaste em má hora, eu estava jantando. Parece mal. Sentimo-nos como um Duarte Lima ou um Toni Ramos e, pessoalmente, acho que pêlos em demasia é na cabeça ou, na pior das hipóteses, no antebraço. Aquela parte que envolve o rádio e o cúbito, portanto. De qualquer forma, Nem Queria Acreditar é uma coisa que obriga a delongas desnecessárias. Se alguém pisa uma bosta de cão logo pela manhã, das fresquinhas, ainda com a mesma coloração da ração Eukanuba ingerida de véspera, acabadinha de largar [a custo, por causa da velhice] pelo Cocker Spaniel da vizinha do 3.º Esquerdo que por acaso até é bem gira e usa a mão esquerda para segurar a trela e a direita para unir a abertura do frágil roupão que ameaça ceder a cada esticão do aparvalhado canídeo, pena é que, àquela hora, ainda leve um quilo de remelas em cada pálpebra e cheire a lençóis de 15 dias, Nem Queria Acreditar. Se, por outro lado, alguém ganha a lotaria, Nem Queria Acreditar. Se nos dizem O Patrão anda a comer a secretária em cima da fotocopiadora, por isso é que ganhas muito menos que ela e aquilo tá sempre com manchas, o Não Quero Acreditar talvez seja substituído por um Não Posso Acreditar. Que é, eventualmente, pior, tendo em conta que, aparentemente, precisamos da autorização de alguém para acreditar...
Presumo que, para nós, os tugas [todos, vocês também que só cá estão em Agosto, putain], seja mais importante Querer Acreditar do que Acreditar, de facto. E desconfio que seja essa a única razão pela qual ainda votamos. É impossível que ainda haja alguém que acredite. Mas Quer.




sábado, agosto 21, 2010

a mArGeM sUL eStÁ a MoRrEr...

Ficou-me, de um outro tempo, esta coisa do Sábado de manhã. Hoje, vou ao mercado com Mariachito, desejando, veladamente, ter uma vida que me permitisse fazê-lo diariamente. Ontem, que era o tal outro tempo, ia, de bicicleta, buscar leite à vacaria e pão a um forno a sério numa vivenda que ficava mesmo ao lado da Bruxa, cujos clientes assustávamos, a altas horas da noite, agarrando-lhes os pés naquele espacinho por baixo da chapa da paragem de autocarros onde aguardavam o 23 das 00h20. Entre aquela e a minha casa, uma floresta de pinheiro manso, que fazia de volta, o mais rápido que pudesse, sem parar na Casa da Árvore, para ainda ver a manteiga derreter sobre a primeira fatia de casqueiro. Mas isto era, não sei se já o referi, ao Sábado. E só de manhã. O quotidiano de todos os outros dias era igualmente campónio. Difícil de acreditar hoje, olhando para os mesmos sítios. O olival onde os gaios nidificavam, a floresta de sobreiros, as quintas de dadivosos pomares guardados por perdigueiros de nariz rachado, os exactos sítios onde havia tocas de ouriço, de lagarto e de coelho, ou ninhos de melro, de pintassilgo e de rabiruivo. 
É claro que, mesmo para uma criança como eu, muito deste lugar, Cerieira, Sobreda de Caparica, estava nas gentes. E está.
No pastor que, com o seu rebanho, guiado por um enérgico podengo, passava, diariamente, pela minha rua e, pois, ao Sábado de manhã, entregava oito queijos frescos às sábias mãos da minha mãe, que já haviam feito o doce de tomate que casava, por amor, com aqueles. 
No louco que o ficou por uma mulher e, sorte malvada e mais que muita, acabou com um couto no lugar do braço porque o burro o arrancou. Ainda hoje se passeia, sempre à pressa, a falarejar sozinho, pelos mesmos trajectos. 
No velhote que nunca foi visto sem o seu rafeiro. Quando aquele morreu, este durou uma semana, se tanto. Deixou-se ir, de desgosto canino, que eu pensava, até ali, não ser igual ao nosso.
Na Ti Helena que me recebia sempre de braços abertos, num deles um saco de damascos e figos, noutro uma cesta de ovos, os mesmos braços onde morreu, disse-mo tantas vezes, Catarina Eufémia, numa carregada pronúncia que trouxera das searas de Baleizão para aqui. 
Na casa em frente ainda hoje se vende gás. Do lado de fora do muro, à sombra de um frondoso diospireiro, uma fila de botijas amarelas, presas por uma corrente, remete esta terra para um tempo que já não é. E era sempre eu que ia, com um meio de transporte engenhosamente inventado pelo melhor marceneiro do mundo, o meu tio Tói, e que fazia a inveja de outros clientes que usavam um vulgar carro-de-mão, buscar o gás dos meus pais. Entrava, à direita sempre o mesmo rafeiro, à esquerda o poço e alguns canteiros de imprescindíveis aromas sulistas. Recebia-me sempre a mesma simpatia de Hermínia e o largo sorriso e suave aceno de Ti Graça. Ti Hermínia saía de casa ainda a mastigar porque, a maior parte das vezes, eu interrompia a bucha (vá-se lá saber porquê, o gás acabava sempre à hora de almoço). Das últimas vezes, entregava-me só a chave, incapaz de maiores esforços e exclamando Estes olhos já nã sã de fiári. Nunca, de fedelho a hoje, em qualquer circustância ou por razão alguma recebi outra coisa daquela gente que não fossem sorrisos, beijinhos e saudações efusivas. Mudei de morada e, a cada retorno, esse passado feito presente. Sempre. Ah, é o mê Nuno da Natália! Ti Graça, esse, era o maior. Digo-o porque era um daqueles velhotes com os quais é impossível antipatizar. A não ser, claro, que se seja um grande estafermo! Sempre na sua pasteleira Esmaltina impecavelmente estimada (porque era, de facto, o seu meio de transporte), molas da roupa por fora da baínha das calças de fazenda, impedindo-as de chegar ao óleo da corrente, samarra e chapéu preto tipicamente alentejano, os olhos esfumados dos muitos anos e a surdez, sempre presente desde que o conheci, Ti Graça tinha o sorriso de quem não deve nem teme, o aceno de uma educação de outros tempos, a candura de quem trocou um campo mais longínquo por outro aqui ao lado. Lembro-me de quase tudo o que conversei com ele, eu quase a gritar, ele sempre a ouvir, descascando um pêro com a navalhinha umas vezes, outras apenas descendo do selim da bicicleta. Lembro-me de quase todos os sítios onde me cruzei com ele, de menino a homem feito, sempre o aceno pronto, sempre o sorriso. Lembro-me de ter pensado, um dia, se tanta humildade transparecida poderia deixar que alguém exclamasse, um dia, Que Grande Homem Que Foi. Eu faria-o, sem problema, só por ver tanto Alentejo num só corpo, que só a idade começou a vergar. Essa altivez que ninguém precisa de apregoar. Vê-se. Lembro-me do seu rosto e da placidez do mesmo, o que, assumo, me é difícil com outros. Mas difícil, mesmo, é imaginar a rua transversal à dos meus pais, ou mesmo toda a Cerieira, sem ele. Para mim, ti Graça não representava apenas um lugar. Era, todo ele, um outro tempo. Bem melhor. Mas que já não volta. Ti Graça morreu ontem. E Que Grande Homem Que Foi!



quinta-feira, agosto 19, 2010

Desenho o teu rosto no ar...

... enquanto me deito na areia. Os pequenos grãos caindo sobre a minha face de olhos semicerrados pela luz do sol. Achei que ficavas bem sobre o azul. Tinha razão. Mas depois mirei-te um pouco, assim, nem uma nuvem em teu torno. E achei que, se pudesse, mudava-te as sobrancelhas. Ou só uma, vá. E fazia com que os teus lábios fossem mais quentes. Mas isso não se vê no desenho. Aposto que, neste momento, estão todos a pensar que sou doido. Não os que me lêem. Os que estão aqui, na praia. E eu com isso. E as orelhas, também mudava um ou outro pormenor. O orifício, principalmente, para que a minha língua coubesse toda. Depois há este ruído das ondas, que me dá sono. Não é bem sono. Esse vem com a calma. E alourava-te os pêlos dos braços, para que fossem dourados, mesmo quando não estás bronzeada. Mas este ano as gaivotas são uma praga. Quando a maré começa a encher, é um mar de penas e bosta verde, ácida, daquela que corrói a pintura dos carros. O ventre não seria tão liso. Falta-te aquela saliência que, de perfil, está paralela com o início da curva das nádegas. O riso das crianças era irritante quando não era pai. Agora, adoro-os. Comecei a desenhar-te o rosto e já estás impressa, assim, da cabeça aos pés, sobre este anil que fica bem recortado ali com a arriba. Os pés. Nesses, não mudo nada!


quarta-feira, agosto 11, 2010

Anedota "Virginie, tu va tomber" reinventada OU Meu Querido Mês de Agosto




Tenho alguma estima pela ameixeira que, por baixo da minha varanda, serve de abrigo para pernoita a inúmeros pintassilgos (Reino: Animalia, Filo: Chordata, Classe: Aves, Ordem: Passeri, Família: Fringillidae, Género: Corduelis). 
Ontem, depois de regressar de banhos de mar nocturnos com mi hijo, deparei-me com uma turba de putos (que nunca vi cá no largo) jogando à bola naquele chinfrim característico. Até aí, tudo normal e bom. Gosto (like). Aparte, porém, uma pequena ovelha negra divertia-se a chutar a bola, por baixo da árvore e com patardos de força, contra a copa, provocando a fuga, espavorida, de todo o bando em direcção às palmeiras em frente (que, como facilmente concluiremos, se nos colocarmos no lugar de um pintassilgo, oferece parca protecção). O petiz repetia, então, a operação (se bem que na palmeira, também eu o reconheci, não repercutia a espectacularidade da coisa), alternando entre uma e outra árvore. 
Ora, eu, que também já fui puto parvo, como todos os putos homens em idade disso, que corresponde mais ou menos à idade das miúdas parvas que querem ser veterinárias ou cabeleireiras e depois acabam a engordar atrás de um balcão da repartição, casadas com um gordão que, enfim, não vale um pirete na cama mas paga as contas a horas, até achei piada à coisa. Acho que cheguei, inclusivamente, a esboçar um sorriso. Quando, porém, aquilo começou a chegar a ciclos de dezenas, ou seja, já era uma coisa concertada e que, pelo ar decidido do fedelho, continuaria pela noite dentro, decidi intervir:
Eu - Ouve lá, páras com isso ou quê? Deixa lá os pássaros, pá!
Ele - Je comprends pas...
Eu - Ai não? Vê lá mazé se não apanhas já ligne bleue para a Porte Dauphine!
Ele - Quoi?
Eu - É quoi, é! Voltas pra Saint Denis que é um repent!
Entretanto, Mariachito aparece na varanda:
Mariachito - O que foi, pai?
Eu - Nada, filho, é um mec que está armado em parvo lá em baixo...
Mariachito - Um mec? O que é um mec?
Eu - É um avec, filho, desses de Agosto!
Mariachito - Um avec? Deixa-me veeeeeeeeeeer!


segunda-feira, agosto 09, 2010

RE RUN A ROUND


Rosa branca desmaiada
onde deixaste o cheiro
deixei-o no teu quintal
à sombra do limoeiro
...
à sombra do limoeiro
onde não sejas regada
onde deixaste o cheiro
rosa branca desmaiada 


- Popular -


Vistas as coisas de forma dura, como côdea de casqueiro bem cozido e pronto para sopas, não ia ao Redondo há seis anos. A última fiquei em casa dos Vieiras que me são mais chegados e não do Parreira, como sempre. Foi para uma passagem de ano de gente boa e enorme, ainda o chefe do clã sorria largamente em conversas de fio a horas. Por baixo da mesa, o Lambuças a esmolar festas. Por cima, vinho do Vitorino, conhecido assim mesmo, por este nome, e mais ninguém faz perguntas. É bom e pronto. Como quase tudo nesta terra. 
Passado tanto tempo, o regresso é feito de ronronares de estômago, como se o reencontro fosse com uma namorada que os anos levaram para longe e, pois, não sabemos se poderão vir réstias de vontades de beijos e outros. Os recuerdos assolam como mosquito de dengue abaixo dos 300m. Porque cheguei a quase fazer vida ali. Fim-de-semana sim, fim-de-semana não, a primeira hora era passada de braço esquerdo no ar em acenos e braço direito baixo segurando a mini ou o copo de vinho novo. Este fim-de-semana foi sim, ou seja, tudo se repete à excepção dos reencontros, que são mais efusivos, como tudo o que é bom na vida. Ti Olga, Dora, Gonçalinho, Zezinho do Plátano, Papo-Seco, Alexandre, Catarina, Domingos, Nestinho, Cochicho, Janita, Vitorino e Leanito vão surgindo à medida que os 41º pouco abrandam com o cair do negro pano, quando o Largo do Tribunal passa a ser um mar de gente por entre o burburinho das crianças e o grunhir de algumas bebedeiras, não fosse este um Portugal Maior. O calor extremo de agora dará, daqui a uns meses, lugar a um frio de se agarrar aos ossos com unhas e dentes. Entre os sobreiros e as oliveiras, o dourado tornar-se-á verde com alguns mantos de púrpura e amarelo lá para Fevereiro. O cheiro será o das lareiras de cozinha e braseiros de picão a aquecer por baixo da mesa do jantar. O Redondo mudou. Já há Centro Cultural e uma variante que evita a curva de S. Miguel de Machede, um novo mercado e até uma Praça de Touros. 
Mas essas são as diferenças que assolariam qualquer um, não eu, que tenho um naco de Redondo comido à bruta em idade disso. 
E sinto-o mudado porque já não há Jonatas ou Manel do Asilo. 
Mas há, ainda, a hipótese de alguém, como eu, cair de amores por uma terra que não é a dele. 
Ficar com ela para sempre, na boca o sabor de um cozido de grão, nos ouvidos uma modinha
Mesmo que só cá volte de quando em quando!





segunda-feira, agosto 02, 2010

Creative Suite Presidencial

Cada um faz com a Viagem aquilo que bem entender. Normalmente faz, com as fotos que daí resultaram, apresentações manhosas de Power Point que impingem, com um ar triunfal, aos colegas da repartição e aos convidados para um jantar lá em casa que se espalham, pelo Chateau D'Ax em pele azul, com cara de enfado, depois de um jantar que meteu bacalhau com natas da Bimby e três garrafas de Chaminé porque diz qué bom.
Estou longe de ser um Gonçalo Cadilhe. Que, algures na sua já vasta obra literária, largou um infeliz Os portugueses não sabem viajar. Acho que tinha a ver com o facto de irem em rebanho excursionista, de charter, para destinos sobrelotados e não, como ele, por barco ou à boleia por esse mundo fora. O pedantismo tem, por vezes, destas coisas. A sorte de se ter Cadilhe por apelido concede a alguns a hipótese de correr meio mundo, com todo o tempo deste e do outro, ao serviço do jornal Expresso ou não, e olhar, com o desdém próprio de quem está cheio de si, para quem não pode viajar de outra maneira que não pela mais óbvia. Depois, vem o charlatanismo devidamente publicado e que omite ser possível, afinal, retirar de uma viagem humilde tantos ou mais ensinamentos que das outras. Tudo depende do desprendimento do autor. Esse desapego de tudo o que sabemos como condição essencial para aprender mais. Afastar dos ombros o preconceito, que não é mais que um conceito predefinido, para nunca acabar num pós-conceito. Ver, sentir, beber e, se assim tiver de ser, vomitar depois... Pura Arte. Criar, portanto. Criar algo com algo que vimos mas continuamos a desconhecer. Que continua a ser longínquo dos nossos alicerces antropológicos e sociais. Mas que passámos a amar. Sem sequer saber muito bem porquê.





domingo, agosto 01, 2010

Saturday Night Live With dIAZ

Na Praceta Aquilino Ribeiro, Quinta Nova, Charnéque Sur Mer, há uma palmeira que larga o dendém na Primavera. No Verão, o chão é uma enorme extensão de sementes que Mariachito colhe, com delicadeza, e guarda nos bolsos da camisa, calções, calças ou o que seja que veste naquele dia. Diz que são ovos de dinossauro. Azar o meu que, um dia, terei brontossauros e triceratops a nascer na máquina de lavar, debaixo dos móveis ou mesmo atrás da sanita, para referir apenas alguns dos lugares onde já fui dar com os pequenos tesourinhos que ele junta num porco que deveria ser para acolher moedas. Ontem, porém, o fedelho encontrou algo mais fascinante... uma espécie de conta de colar em forma de feijão. Olha, pai, olha, este ovo é diferente, é de quê? Assumo agora que deveria ter demonstrado mais interesse Bah, é de Tiranossauro, pá, esse leva mais tempo a eclodir. Ainda os bichos-da-seda vão nascer primeiro! O enredo da noite tem início cinco minutos depois:
Ele - Paaaaaiiiii... vou meter o ovo do tiranossauro no nariz...
Eu - Ai não vais não, porque depois não consegues tirar e temos de ir ao hospital!
- Outros cinco minutos depois:
Ele - Paaaaaiiiii... meti o ovo de tiranossauro no nariz e não consigo tirar...
- Tentei o aspirador do ranho, a pinça das sobrancelhas da mãe, e até o olhar para o sol para que espirrasse e tapássemos todos os outros orifícios que interferissem com a narina esquerda. Nada. Clínica Charniqueira com ele. O enfermeiro tenta com várias pinças. Mariachito está estranhamente sossegado e colaborante. Portas-te muito bem, rapaz, diz o prestativo hombre, que não me levou dinheiro. Pois, eu sou do Benfica, responde o puto, que toma, só ali, real consciência do que fez. Desculpa, pai, por te ter desobedecido deliberadamente [a fala do Rei Leão que repete sempre que pode ]. O enfermeiro desiste: Não consigo. Está muito fundo. Tem de ser um otorrino. 
Hospital Garcia da Horta, que serve Almada, Seixal, Barreiro e Montijo, sendo que as urgência pediátricas destes dois últimos encerraram. 1h03m depois da chegada: Não temos otorrino a esta hora. Terá de ir para Santa Maria. Penso, mas não digo É curioso... até dia 15 deste mês tenho de pagar 160€ de Segurança Social e não creio que um simples "não tenho dinheiro agora, vão pedir aos ricos, meus chulos dum cabrão" sirva de desculpa. Em direcção a Lisboa, estão 36.519 carros de pessoas que vieram, sem pagar (acho bem), desfrutar das praias para a manutenção das quais pago eu a contribuição autárquica (acho mal). Penso, mas não digo É engraçado... Nem para estas situações existe um dístico de Morador que me facilitasse a coisa, como aqueles que isentam quem reside em Lisboa, cidade que me obriga a pagar €1,40 para lá entrar e cerca de €1 por hora de parquímetro se levar carro. Eu vou, contudo, trabalhar, isto é, contribuir para o suposto avanço das coisas. Não vou apanhar sol e banhar-me no Atlântico!!!
Já no Santa Maria, chamam-nos para a triagem 1h43m depois da chegada. Mariachito está, como sempre, eléctrico. Corre, canta, fala pelos cotovelos e restantes articulações. Penso dizer-lhe Ouve, pá, tens que te fazer de doente para sermos atendidos mais rapidamente. Se mostras que estás bem nem amanhã saímos daqui, mas achei que deveria evitar lições de Português-A-Lidar-Com-A-Merda-Que-Pode-Ser-Viver-Em-Portugal para daqui a uns anos. Aguarde na sala-de-espera, ordena-me, sem um por favor ou outra reverência qualquer, a enfadada senhora. Penso, mas não digo Aguardar? Mais ainda? Lembrei-me agora que até dia 15 de Agosto tenho de pagar o Trimestre do IVA e talvez não possa exclamar, perante o executante que se faz acompanhar sempre por GNR's quando vai numa de penhorar bens, "Olhe meu caro amigo, aguarde aí no átrio do prédio por favor, enquanto eu tento ganhar honestamente a vida, já que não posso vender drogas e armas, forma curiosa de fugir ao fisco"
Quase 3h depois, chamam-nos. Penso, mas não digo O meu filho só tem quatro anos. E, porque é meu, é um puto especial. Quererei eu este país para ele? Merece ele este Estado? Não! Encorajá-lo-ei a sair de Portugal até que este seja um lugar feito para os portugueses, o povo mais belo do mundo. Por agora, é feito à medida dos cães-de-fila do Estado, os privilegiados. Militares, polícias, funcionários de Câmaras Municipais, Tribunais, Finanças, SEF's, Segurança Social, são gente que se queixa de barriguinha-cheia. E não se recusam a assumi-lo. Apenas não fazem a mínima ideia do que é estar pior que eles. Quando esta gente se queixa, arreda, sem sequer dar por disso, todos os outros, que estão PIOR AINDA, para o Quarto Escuro. O Buraco Negro que é ser-se português com Cartão de Contribuinte. 
Quase 4h depois, Mariachito já está desobstruído. A Ponte 25 de Abril não. 
Do lado da foz do Tejo, ainda há luz. É púrpura e faz um jogo de sombras com o Padrão dos Descobrimentos, os silos da Trafaria, o Bugio. Penso, mas não digo Merece este Estado um Povo destes? Não. Vamos todos embora daqui. Gente de real valor, os talentosos, os bons... Partamos e sejamos os eternos retornados de Angola, recordando para sempre as belezas naturais, as tasquinhas, as sardinhadas e os dias de praia até à noite, as vindimas, o queijo de Serpa, as rapidinhas entre as rochas do Sudoeste Alentejano, as cadelinhas a brotar da areia da Fonte da Telha, as anémonas a agarrarem-nos os dedos nas poças das rochas das praias. Mas façamo-lo longe daqui. Deixemos isto entregue a quem estragou! A quem continua a estragar. A quem assina, nas Finanças, ordens de penhora de bens e depois consegue dormir à noite. Aos polícias que ganham percentagem sobre as multas que passam. Aos funcionários de todos os guichets públicos que nem um sorriso dão a ninguém, tratando-nos como robots, lá porque o são! 


Por mim, pelo meu filho mas, também, pelo mais belo povo do mundo, com todos os seus bónus, buços e ausência de dentes incluídos, cheiro a ovelha e insanas conversas de pastores, donos de tascas com canários estridentes de norte a sul, unhas sujas de quem trabalha a terra do condado, velhos com cães obesos, de bengalas de loureiro e bóinas aos quadrados, mulheres de pescadores a chorar mortes que viram da praia, mães como não há no resto do mundo, rostos morenos de rugas fundas a sul, rostos rosados a norte, camisas e samarras no pino do verão, copos de branco antes do almoço, litros de tinto depois do jantar, por todos eles e outros ainda, desde que portugueses, os verdadeiros e bons, os humildes e Grandes, os que Criam, não os que Destroem...


... Quero mesmo muito que este país SE FODA!