quarta-feira, agosto 12, 2009

Argumento n.º 802

Pela primeira vez em muitos anos, Cinema como Teatro. Por exigência do realizador e argumentista. Sem trailers de visionamentos vizinhos ou que se avizinhem, sem publicidade e com começo à hora marcada. Quem chega atrasado, porque mora na Duque de Loulé e decide levar o carro para o Monumental, perdendo tempo à procura de estacionamento, fica à porta. Pode, contudo, trocar o bilhete para um da sessão seguinte. Ou então vai ver o Sei o Que Fizeste o Verão Passado Outra Vez. Ecrã negro, mudo, letras brancas, courrier new:

El Mariachi dIAZ produções

Ainda ecrã negro e alguém pigarreia, cavernosamente, uma voz que se adivinha barítono, um decibel acima do melodioso, poucos abaixo do pregão:

Sobre o talco dos dias
leve aroma a lavanda
penso leve na demanda
que hidrata as virilhas
Ser feliz

Um, dois, três minutos
Um momento, quanto será?
Todo o tempo do planeta
Congelado num cometa que aterra, certeiro,
Aqui, entre duas costelas
Sem dor, mazelas
Ser feliz...
... se não é isto, que será?

E depois, quando parte
Esse talco dos dias
Assam as partes
Amarga-me a boca
Quero eu, querias...
Que em brado de voz rouca
Tudo fosse
Não virilhas em sangue
Cometa Big Bang

Mas sim a eternidade em Fá
Como a música que ouvi
Refrão em Mi
A que te dei, sorvi, sorvemos
Uma vida boa, curta que seja
Com esse aroma a cereja
É passá-la sobre ti


Na última estrofe, fade in do homem que lê, olhando o ecrã do computador. Um gole no copo de vinho, ecrã negro

A Be Your Own Dog Joint


Um bafo no cigarro

Verdade de Ti


Um digitar na tecla do ponto final e, neste exacto momento, o ecrã volta a ficar negro ao som desta. Os nomes dos actores alternam com imagens daquilo que será, nesta história, uma manhã de Domingo, a saber:
. A agulha sobre o vinil, a label da banana do Warhol em segundo plano.
. Torradas de pão alentejano com doce retirado de uma jarra com um pequeno rótulo onde se lê, numa letra escrita a aparo, fig sweet.
. Café duplo com uma gota, literalmente, de leite.
. Desviar o cortinado, sombra dos plátanos, festa no cão que dá uma dentada na torrada.
. Câmara fixa nos ombros, estilo videoclip, a caneca do leite em primeiro plano mas desfocada, uma sala com o cartaz do Trainspotting, um corredor com o cartaz do Delicatessen e um quarto onde, à cabeceira, está uma reprodução do Jardim das Delícias de Jerónimo Bosch. Na cama, de lençóis em desalinho, está um corpo magro, moreno, explicitamente nu. Acabaram, por ora, os pruridos hipócritas com a nudez no Grande Ecrã, púbis depilado, pés pequenos, perfeitos, dos quais a câmara se aproxima e ele beija:

Ele - Queres o pequeno-almoço na cama, como nos filmes em que as pessoas gostam muito uma da outra, mas escondem sempre algo e, inevitavelmente, é sobre isso que o filme incidirá?

Ela – Não. Prefiro fazer-te um broche e beber-te. A ver se hoje saímos. Estou assada e é preciso apanhar sol. A vitamina D, ou lá o que é, é muito precisa.

Ele – E se morássemos na Islândia, ou Oulo, na Finlândia, e fosse Inverno? Onde irias arranjar o sol?

Ela – Em comprimidos. E ficaríamos em casa a foder. Infelizmente, moramos em Portugal, pelo menos por enquanto. E lá fora está sol. E calor. E há gente. Com quem podemos falar. Estou farta de gemer e gritar, gritar e gemer.

Ele – Barriguinha cheia, é o que é. Mas vamos. Acabei o argumento.

Ela – Eu sei, ouvi-te a ler em voz alta.

Ele – E porque não vieste por trás enfiar-me a língua no ouvido?

Ela – Porque achei estranho.

Ele – A língua no ouvido? Já me podias ter dito. Pensei que gostavas.

Ela – E gosto. Do poema não. É estranho.

Ele – Tu também és. E não é por isso que me dás menos tusa. Sou doente, eu sei. Febres de ti, tenho eu, muitas. E já passava horas a lamber-te a aspirina. Fazemos um sixty nine e tu chupas-me o paracetamol, boa? Já lhes devíamos ter posto nomes há muito tempo. E estes parecem-me per-fei-tos.

Ela – Sim, doutor. E depois? O argumento... é para quem?

Ele – É sempre para ti, primeiro. Tu é que és a crítica. Se não passa por ti, não vai a mais ninguém.

Ela - Mas eu só falei do poema. O resto...

Ele – Esquece o resto. O poema era para acabar em grande. Ele está a dizê-lo dentro da banheira antes de deixar cair o secador em modo Arranca-Escalpe e começa a música que eu meti ali no prato, mas a versão do Beck.

Ela – O grau de electrocussão não depende da velocidade de sopro do secador, pá!

Ele – Ai não?

Ela – Não! E eu é que venho da terrinha, meu labrego!!!

Ele – Trigueirinha. Cheiras a cerejas, como no poema.

Ela – Ai era para mim? Então já gosto mais...

Ele – Materialista das letras.

Ela – Fode-me... vem-me ao cu. Quero-te!

Ele está sentado no chão, costas encostadas à cama, ela passa-lhe o pé pela nuca, depois chega mais perto, passa-lhe os lábios, língua ligeiramente de fora, pelo trapézio, pescoço e, no momento em que lhe enfia a língua no ouvido, entra esta

As imagens seguintes são da estrita responsabilidade do realizador e pretendem deitar abaixo barreiras ou apenas redifinir aquilo a que se convencionou chamar de porno/erótico, dois termos distintos mas que julgo ainda não terem sido alvo de algum consenso no que toca à sua definição, pelo menos exacta.

A câmara segue as mãos masculinas, morenas, cheias de veias, enormes à escala do corpo dela. Os seios que se arrepiam, os mamilos que escurecem, o ventre que se exalta, demoram-se os dedos pelos lábios dela, morenos, o clítoris cresce desmesuradamente, penetra-a com dois dedos e a câmara filma o perfil dela que aparece, por baixo, num plano vazio, boca aberta soltando um gemido, um longo fio de saliva ligando os lábios grossos. Ela vira-se e ergue as nádegas, ele continua a penetrá-la com dois dedos e lambe-lhe o ânus avidamente, com ganas de mais e mais e mais e mais e vira-a novamente, sobe com a língua pelo corpo e coloca-se à entrada dela, glande inchada, roxa, junto da vulva, ela puxa-o para si com os pés, ele não cede, passa-lhe a língua nos lábios e enfia-a na boca no mesmo tempo em que a penetra profundamente, precisamente quando os violinos aumentam de intensidade e segue a câmara para a janela, não há uma brisa que agite os plátanos. As antenas decrépitas no telhado vermelho. É esta a imagem enquanto se ouve:

Ela – Por mim... deixavas cair o secador?

Ele – Depende do grau da electrocussão... Mas levava-te comigo à Fonte da Telha, roubava um barco aos pescadores e remávamos até ver onde ia dar... a Cacilhas, provavelmente!

Ela – Foda-se, amo-te!

O plano está agora sobre ambos, fitando-se mutuamente, quatro olhos brilhando muito, as lágrimas dele são as primeiras a cair...

Ele – Eu também! Mas não o voltarás a ouvir!

Entra esta...

13 comentários:

Anónimo disse...

Segue assim um comment que requer uma pequena nota:
- negarei a autoria deste elogio perante tribunal se for preciso. Não estou aqui para agradar a ninguém nem tão pouco para lhe tecer elogios - até porque toda a gente sabe que tirando a tua escrita..n t curto! ;)


e agora o comment:

Pq apesar desse feitio que irrita qq um, de todo o (delicioso) pretensiosismo que encontramos neste blog, de toda a PUTA DA MANIA, de todas as taras e afins..

ESCREVES BEM, PORRA!!!
PIM!!!

e mais não comento pq nem me atrevo a dissecar o post.


Maria-ainda-na-cama-porque-posso-e-estou-ainda-de-férias-mas-vou-já-levantar-me-porque-assim-me-escapa-a-vida-por-entre-lençois-Reis

Jornalário disse...

PORCA!

Anónimo disse...

vá..se estas a tentar agradar-me e agradecer o elogio..tás no bom caminho. Vá..agora chama mais nomes chama..n pares!

:P

a inveja é tramadaaaa :P

vai masé trabalhar! aí, nesse sitio onde nem o sol se atreve a entrar..trabalhaaa..mauahahahhaha muahahahha ou então escreve mais coisas para deleite de quem te lê..ao menos isso

tão fofinha q eu hj estou :D

enquanto isso eu bebo uma limonada no meu pátio e oiço o cantar dos melros que tentam, mal o zorbas vira costas, um voo directo à tigela dele para lhe roubar a comidinha..sacanas!!


Marie-reguila-mode-on-Reis

1entre1000's disse...

[serão de quinta-feira sofá da sala, pernas flectidas e sentada sobre os pés, olhos esbugalhados enrolar de madeixa de cabelo entre o indicador e o polegar]
entra o meu sócio: pela expressão... tas a ver oq? O californication?
eu: acredites ou não isto é uma produção portuguesa e é BOM!
Sócio: ou o país ta a mudar ou estas a ficar pior...
eu: o país vai mudar quando redactores assim começarem a publicar à SÉRIA o mundo dos media vai mudar vais ver!

Anónimo disse...

agora é que disseste tudo..

nem mais!



Maria

Zorze Zorzinelis disse...

Conjugaste maravilhosamente o texto e música com a foto. No fundo, o amor é como um pássaro meio atordoado na sua pressa de crescer voando.

Rita disse...

Delicioso!Quando estreia?!
Se os escritos das revistas de viagens tivessem este calibre, as vendas aumentariam significativamente! :)

Heloisa Abreu disse...

Eu entrei neste blog ao acaso enquanto procurava algo sobre o Rufus Wainwright e acabei lendo algumas coisas. Sou brasileira, então tirando algumas coisas um pouco ofensivas que disseram sobre o Brasil, eu adorei o que você escreve. Nunca estive em contato com qualquer coisa de Portugal (a não ser por umas pessoas da minha família que vieram daí) e me surpreendi como escreve e o que você escreve. Não digo apenas por suas críticas e também pela forma de escrita que eu sempre achei que fosse muito diferente daqui do Brasil. Sinceramente as pessoas pelo mundo afora têm um visão muito limitada do Brasil e esquecem que é um país grande demais para ter um único jeito. Moro em Brasília e sei como as pessoas resumem o Brasil a apenas a Bahia e ao Rio de Janeiro, sendo que são tão completamente diferentes do resto do Brasil que chega a parecer outro país.
Desculpe por este texto enorme, eu gostaria de escrever mais e sei que não devo encomodá-lo com tais coisas sem objetivo. Então eu só queria dizer que admiro muito o que você escreve.

Heloisa Abreu

El Mariachi disse...

Cara Eloísa...

Peço desculpa se ofendi você. É apenas meu jeito de estereotipar, o que faço com muitas outras coisas, mas que não quer dizer que não goste. É só porque tem graça. Faço isso para ser, apenas, engraçado. Um palhaço, portanto. Porque acaba sempre por melindrar alguém. E isso não tem graça. Pelo fato, peço desculpa para você. Você está cheia de razão quando diz que o Brasil tem 1001 jeitos de pegar a vida. Sei disso porque interajo com inúmeros brasileiros, de São José do Rio Preto a Jacaré Paguá. Sou, inclusivé, amante da literatura de vocês, do Já Podeis da Pátria Filhos ao Estorvo. Porque serão vocês, com uma população muito maior, os maiores responsáveis pela palavra escrita (e, claro, cantada) em português. Nós, os tugas, e muito particularmente eu, somos um pouco zelosos com nossa língua. Por isso peço desculpa. Mas, ao mesmo tempo, o jeito como escrevo tudo isto, mais "brasileiramente", pretende demonstrar para você que há, de mim, respeito.

Volte sempre,

o dIAZ

Master Of The Wind disse...

agora fódeu!

Anónimo disse...

Fô deuz quem criou o mundo!
Freaky

Coffee Taste disse...

Tão lindo

Anónimo disse...

BOM, BOM!

Isto Sim é bonito.
Caga nos estereotipos!

Tóne