quinta-feira, novembro 05, 2009

O Retrato-Nariz-Capote, uma saga em homenagem a Nikolai Gógol OU Conto Fantástico Para Rapazolas

Dimitri não era nem baixo nem alto nem magro nem gordo nem bonito nem feio ou, em suma, era um tiozinho* normal, à excepção do facto de ser pintor. Acordou, naquele dia, em sobressalto, olhando uma outra vez para o retrato a óleo que tinha, na véspera, comprado no mercado da ilha Vassilievski. E, para seu espanto, aquela espécie de ancião em trajes asiáticos, o retratado, continuava, como quando adormecera, arrepiado de medo e frio, fixando em si aquele olhar penetrante, que o perseguia para onde quer que seguisse, ou fugisse, que era o caso desde o minuto em que o pendurara na parede. Soergueu-se e esfregou os olhos, certificando-se de que não estaria, porventura, ainda a dormir. Mas as remelas que rolavam, por debaixo dos dedos contra as pálpebras, eram demasiado reais. Reabriu-os e não teve outro remédio que não correr para a casa de banho, a partir da qual um biombo implicitaria tão demoníaca visão. Apoiou-se no pequeno lavatório e voltou a cerrar as pálpebras, esperando que o coração, por ora feito puro-sangue em corrida de fim-de-semana, obrigasse a respiração a estugar passo. Quando o fez, porém, foi para dar de caras com a mais invulgar visão. No diminuto espelho que pendia, juntamente com a lâmina de barbear, do pequeno prego da parede, viu que algo se ausentava do seu rosto. Não lhe concedia inexpressividade e, por isso, não tinha a ver com as sobrancelhas. As suíças** lá estavam, cuidadosamente aparadas pelo barbeiro de Okhta. É então que, boquiaberto, prova irrefutável de que a boca e os lábios também ali se quedavam, se depara com a completa ausência de nariz. O seu pequeno apêndice afilado, que tantas vezes lhe valera alguns galanteios por parte de senhoras da alta sociedade moscovita, desaparecera, por completo, para nem fossas nazais ou sequer narinas restarem. Certificou-se, primeiro, de que conseguia mesmo respirar e, ao topar que o conseguia fazer pela boca, precipitou-se, com cuidado para não rever, nem de soslaio, o fantasmagórico retrato, em direcção ao seu capote***. Era urgente que saísse em busca do seu pequeno tesouro que, ali, bem no centro do rosto e, afinal, concluía agora, porque nunca o havia considerado antes, tanta falta fazia. "Mas que invulgaridade, por S. Jorge dilacerando o Dragão", pensou. Por outro lado, não poderia ser visto em público nestes tratos. Subiria, tanto pior, as golas do seu capote coçado até mais nada para além dos olhos estarem à vista. Mas, infelizmente, tal gesto apenas serviu para que outro assombro se apoderassse de si. No cabide por trás da porta de entrada do frio apartamento, havia, apenas, a total ausência da peça de indumentária pretendida, e que tanto abrigo dos gélidos ventos da Tundra, que assolam a cidade de Outubro a Março, lhe concedera. Só podia estar a sonhar. E desta vez nada tinha a ver, infelizmente, com a filha do vendedor do mercado de Chukine Dvor, reflectindo a luz do sol nos seus olhos claros, escondida por trás do tabuleiro repleto de sapatos. Julgando estar numa gravura lubok ilustrando o conto popular Miliktrissa Kirbitievna, deixou-se cair para trás, apoiando-se na parede. Tentou lembrar-se da noite anterior, se o vodka de terras finlandesas lhe entorpecera os sentidos, se o goulash da mulher do proprietário da taberna, húngara feita cozinheira com pretenções a ucraniana estaria com excesso de paprika picante, se sentira frio no regresso a casa, sinal de que o agasalho ainda lá estaria, caído sobre a mesa. É então que ouve três fortes pancadas na porta. Só poderia ser Nikita, o miúdo que lhe tratava, esporadicamente, das limpezas do estúdio e que ele observava, de sorriso divertido, a cada tentativa de arrumação de restos de telas, molduras por montar, estudos em papel, pincéis, óleos e terebintina. "Quem é?", perguntou, enfiando o roupão. "Sou eu, patrão. Nikita!", respondeu a pueril voz. Dimitri roda a chave exclamando "Mas, tiozinho, não é dia de varridelas" e abriu a porta para ver que, do penúltimo degrau, a criança lhe esticava o seu vestimado agasalho. Nikita, esse, não conseguia disfarçar o espanto, apontando o olhar bem para o centro da cara do amo. Muito baixinho, exclamou, depois de pigarrear "E acho que, no bolso esquerdo, encontrará algo que lhe pertence..."!

* "Tiozinho" era, na Rússia do Séc. XIX e, principalmente, em S. Petersburgo, a forma mais popular de tratamento numa conversação.

** Na Rússia, as patilhas e, principalmente, as suíças, eram consideradas sinal de elevado estatuto social.

*** Peça de roupa essencial contra o frio de S. Petersburgo.

7 comentários:

Zorze Zorzinelis disse...

Este post é igual ao altruísmo de um músico de jazz...

rosa disse...

continua.

rosa disse...

(li todinho)

Kaui disse...

Hum... pois que... enfim...

Zorze Zorzinelis disse...

Tiveste uma paragem cerebral? Não há mais postadas?!

Anónimo disse...

Ou isso ou então anda a disfarçar para que os colegas de trabalho não lhe digam "tão eu cab#%$, andas cheio de trabalho, só te queixas que te cai tudo em cima mas depois postas coisas com 8mil caracteres no blog?"


vá..dIAZ..eu não conto a ninguém..siga, mais um!!!


A Maria-já-jantada-e-entregue-as-doces-Reis

Jornalário disse...

This Blank Page dilema is killing me, meeeeen...