Estão -15ºC que já não me aquecem nem arrefecem. Pronto, apanharam-me, talvez arrefeçam, afinal, um poucachinho o queixo e a ponta do nariz que, sendo o meu, deverá considerar-se uma superfície considerável. O queixo, esse, é de dimensão e feitio normais, pelo que podemos avançar no que toca a colocar o leitor num plano imaginante equiparável ao do momento em causa. Que é por volta das 5h30 da manhã, quando o lusco fusco, esse magano amicíssimo do modo tungsten da Canon empresta ao céu aquele azul escurão sem que a iluminação pública tenha sido desligada. A neve, essa, também está intacta no passeio e sou eu que lhe tira os três, por hoje, num tão inspiracional crrrót crrrót quanto o shláp shláp a que nos remete a infeliz expressão que usei. Podia ter usado macular a alva superfície ou tatuar de humana presença o que a natureza preparou com tanto esmero mas agora já é tarde e, confissão ao fim de tantos anos de profissão, nunca apago o que escrevi. Só às vezes. Muitas. O tripé é, agora, o meu principal inimigo. Agride-me violentamente de cada vez que o transporto daqui para ali com queimaduras nos dedos infligidas em sucessivos upper cuts de boxeur dopado, preferia mil vezes uma chapada de mão aberta do Tarzan Taborda, principalmente agora que está morto e resta apenas aquele baluarte na Fonte da Telha, um prédio onde ainda se pode ler que, em tempos, cuidou das costas das pessoas com arte. Arte dele. Está, pois, na hora do pequeno-almoço no hotel e faço aqui uma consideração, que se provará, adiante, propositada, do que são, para mim, duas provas máximas de civilização: 1. Croissants-como-deve-ser, que é mais do que os cruássans tugas, meias-luas de massa idêntica à do pão-de-deus e merendas-mistas e só não de palmiers (ou palmiéres, vá) porque não lhes deu para isso. Croissants-como-deve-ser são leves pedaços de pecado com apenas ar entre cada uma das mil folhas, tão vazio daquele peso que por cá grassa como cheio de gordura que lustra as mãos a cada dentada consciente de todo o pecado que esse acto acarreta... 2. O facto de haver uma sala do bar (neste caso) mas também de qualquer restaurante, cafetaria ou outra coisa qualquer ligada aos prazeres da gula onde se pode fumar. Na Áustria, ao contrário de Portugal, os fumadores não passaram a ser, tão repentinamente como das 23h59 de dia 31 de Dezembro de 2007 para as 00h00 do dia 1 de Janeiro de 2008, leprosos a evitar e olhar de esguelha, até a despedir, se tal fose preciso, tacanhez norte-americanizada feita cruzada contra o cancro nos fumadores passivos, essas bonequinhas de porcelana que podem conduzir carros de consumos astronómicos, não considerar uma só ida de transportes públicos para o emprego, pedir naco na pedra num restaurante de cinco metros quadrados mas, por dEUS, inspirar o fumo desses cidadãos de menor monta é que não. Ficará, por ora, e em todo o despropósito que assumo, o contribuinte a saber que foram gastos milhões de euros para que o preconceito contra os seropositivos e toxicodependentes fosse amenizado e, afinal, é ver-me acender um preguinho que, admito, na minha liberdade de escolha, contribui para a minha morte precoce, e é logo o gajo do lado a assumir aquele ar dos justos, transparecendo, por todos os poros, vontade de me cortar a carótida com o x-acto da Mecanorma que já não pôde comprar na Papelaria Fernandes porque, enfim, como há legislação mais importante como seja a proibição do fumo ou o casamento entre homossexuais, deixou-se que alguns marcos do comércio tradicional legitimamente português abrissem falência. E é a pensar em tudo isto, no êxtase que é o primeiro café do dia com o primeiro cigarro do dia com a primeira cólica do dia (esta é efeito do êxtase e não tanto parte do êxtase em si), em amena temperatura e ambiente aconchegante, rodeado de madeiras e envergando apenas uma tshirt, que vejo o personagem. Fuma mais compulsivamente do que bebe canecas de black coffee, ou vice-versa, fala mais com toda a gente que aqui entra do que com o cão deitado a seus pés, ou vice-versa, abana o bicho duas vezes a cauda e diz au auuuuu a qualquer coisa que ele diga, num alemão quase tão imperceptível como o dele. Sai-lhe em gasta voz um Morgen! direito a mim. De onde sou, quantos dias vou ficar, se gosto, porque é que olho tanto para a mesa do fundo, não que ele não consiga também perceber que elas são atraentes, digo-lhe que tenho quase a certeza que são sérvias e, a serem, estão longe de se comparar em beleza com as outras que por Belgrado ficaram, ele diz que as mais belas do mundo são as jamaicanas e conta, de brilho nos olhos baços da idade, que viveu em Port Antonio — onde estive há meses — dos 24 aos 28. Debita imagens que lhe ficaram na memória e que não me atrevo a desiludir, mas guardo para mim como tudo está diferente. Fico com a certeza que sim, afinal, aquela é a melhor idade para viver na ilha que é jangada de África à deriva no Mar das Caraíbas. Pergunta-me como está Montego Bay, Kingston Town, digo-lhe apenas que não fui a esta última, omito as razões. A Jamaica de sessentas era, pois, outra da mesma fruta. Nem que fosse porque Sir Bob Marley ainda não tinha direito a estar a dar música em todos os estabelecimentos para turistas, como se toda a gente, do barman ao taxista, tivesse carregado na tecla repeat ao mesmo tempo. Também ele foi jornalista de correr mundo, também ele amou, de formas diferentes e por diferentes razões, todos os cantos por onde passou. Agora tem as recordações. Aconselhou-me a guardar, também, as minhas, em mil cadernos como este onde estou borrar algo e que por acaso ainda tem borras de Blue Mountain Coffee. Não me pareceu, pois, que Horst Ebersberg fosse apenas um reformado conhecido por todos os habitantes locais. Mas pensei que tal se devesse à minha sensibilidade atordoada pelas extremidades geladas e cérebro ainda longe de estar a carburar como em latitudes mais quentes. Combinámos um encontro no teleférico de Hahnenkamm, para um retrato de família, às 13h, hora em que levaria a FILHA DE OITO ANOS (sim, o ar da montanha escusa os comprimidos azuis) para a aula de esqui que, aqui, é actividade extra-curricular no ensino público (assim como a natação o é em Portugal... ou não). Não consegui cumprir com o acordado. Mas Engelbert, o meu guia montanheiro (esse que pensou que eu, menino de areia de praia, haveria de achar que as pernas enterradas em meio metro de neve por colinas com inclinação de ângulo quase recto não era nada por aí além), descansou-me em relação à falha. Horst é, provavelmente, o habitante local mais descontraído em relação a tudo. Mas conhece-lo? Pergunto, ao mesmo tempo que penso que, vista daqui, mil oitocentos e tal metros acima, Kitzbühel não parece assim tão pequena. E quem não conhece Horst? Olha... aquela — e aponta para uma pequena casa de madeira quase omissa pelos enormes pinheiros numa das vertentes que desce, quase a pique, deste cume onde me trouxe — é a sua cabana de Verão, quando tudo isto está verde e florido e quase podes ouvir a Heidi ou a Julie Andrews a cantar, o que seria bem mais agradável que os grupos de iodeling locais. É onde vem para escrever ou apenas ler, sei lá. Pergunto se é apenas conhecido como uma espécie de louco da vila ou algo próximo disso, para receber um ar indignado de volta, com um Estás louco? O Horst é uma das pessoas mais estimadas de Kitzbühel. Não consegue estar parado. E continua a fazer o que faz melhor. Tem um pequeno jornal mensal, gerido, redigido e publicado por ele. Quando há algo que não está bem por aqui, ele investiga e dá a notícia, apontando o dedo com tal arte que, sem ofender ninguém, as coisas solucionam-se com uma rapidez astronómica. Há uma frase local que talvez se torne um ditado: Antes uma multa da polícia que ser policia numa notícia do Horst.
3 comentários:
já metias um caralho de uns parágrafos nesta merda,não?
Beijos pá!
Edu, beijos?
Diaz, isto é que é parir texto, não li, too long not enough time
;-)
Freaky
Eduardo... ou começas a desenhar para os textos que te dei ou começo já a lubrificar a glande! Meu porcalhão... gosto de ti! ALMOÇA!
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