segunda-feira, novembro 20, 2006

O Homem que Comia Figos ao Nascer do Sol

O Homem que Comia Figos ao Nascer do Sol era um sacana normal. Nem alto nem baixo. Nem bonito nem feio. Nem magro nem gordo. Nem alegre nem sorumbático. Nem loiro nem moreno. Nem sociável nem introvertido. Para além da relação que impunha, diariamente, entre Os Frutos e a primeira aparição do Astro Rei, pouco mais se lhe pode apontar. Talvez que comia pão de sementes comprado de véspera na Pastelaria Central do dormitório onde residia. Café de saco de proveniência duvidosa. Que o laxava de forma doce, lânguida. Por forma a poder admirar-se no espelho colocado por trás da porta da casa de banho. Sentado na sanita. O ventre crescendo ano após ano. Um dia há-se cobrir a zona púbica. O Homem que Comia Figos ao Nascer do Sol tomava banho com gel duche de aveia e champô anti-caspa. Exigia enxaguar-se com a carícia do turco de uma toalha branca. Esquadrinhava o chão em busca de cabelos. Pêlos. Caídos. Levava a filha ao Colégio dos Cedros. Que não existiam. Que ninguém sabe se alguma vez existiram. Apenas três plátanos. Que ofereciam um manancial de sazonais alergias à criançada. Um eucalipto. Com a inscrição Ana+João=Amor Eterno. Ainda lá está. A inscrição. Uma jacarandá. Purpureava o edifício cinzento. Já fora branco. O Homem que Comia Figos ao Nascer do Sol bebia uma bica antes de entrar no emprego. Chutava dois ou três lugares-comuns à empregada brasileira. Que a enojavam. Não sabia. Ele. Entrava no edifício. Percorria um total de 24 corredores. Contara-os há 14 anos. No primeiro dia de emprego. Quase todos os colegas o malediziam à sua passagem. Coisas ruins. Injustificadas. O Homem que Comia Figos ao Nascer do Sol desconhecia que o chefe convidava toda a repartição para almoçaradas ao fim de semana. Na vivenda da Malveira. Confessava aos presentes achar que O Homem que Comia Figos ao Nascer do Sol era maricas. Ou acabaria por ser. Um dia. O Homem que Comia Figos ao Nascer do Sol almoçava sempre no mesmo sítio. Sempre no mesmo lugar. Em pé. Ao mesmo balcão. Uma sopa. Um pastel de massa tenra. Uma fatia de bolo de bolacha. Um café. O Homem que Comia Figos ao Nascer do Sol chegava a casa cansado. Deitava fora o jornal que não lia. Tentava ver o filme que alugava. Fingia que ouvia as perguntas da filha. Adormecia no sofá. Lavava os dentes com Colgate Herbal. Deitava-se. Lia duas linhas do livro. Que deixava a meio quando já não constava do Top 10 da FNAC. Tentava fazer amor com a mulher. Gorda. Repelia-o. Ela. Adormecia. Ele. Pensando na brasileira da pastelaria. Nos figos que comeria na manhã seguinte. Um doce amanhecer numa vida amarga. Como fel. Um ritual autista. Como tantos outros. Mas só seu.

9 comentários:

Anónimo disse...

Deprimente mas bem contado.
É assim que te vês daqui a uns anos?

El Mariachi disse...

Queria ver se não.
Mas conheço bastantOs, como se diz na tua terra!

Anónimo disse...

Bom!

Continua...?

Toni Rebel

Anónimo disse...

Ó gajo da outra banda,
Bastantos?!
Não sei de que terra é que tu pensas que eu sou...Mas parece-me que estás enganado,

Anónimo disse...

Muito bom, pá! Gostei mesmo! E tenho a certeza (espero ter) que este não será o teu dia-a-dia daqui a uns tempos!

Anónimo disse...

Dass....!!!!

http://www.glumbert.com/media/dolphin

Toni Rebel

Anónimo disse...

Aichhhh Toni! Já vi isto! Não há melhor forma de te estragar o dia!

Anónimo disse...

Direitinho às entranhas! Ou ao intestino grosso, que figos logo ao pequeno-almoço não deve lá dar muito bom resultado.
Belo conto de Natal, amigo Diaz.

El Mariachi disse...

Eu podia dizer-te que dá um resultadão, ó Nenas, mas isso dava ares de autobiografia, e é melhor não.