Uma paragem de autocarro. Que ficava entre duas araucárias. Que ficavam entre uma fila de ciprestes de muitos, muitos quilómetros. Ao longo de uma estrada que rasgava muitos mais. De nada. Ou quase. A certas horas do dia, sempre as primeiras ou as derradeiras, as árvores projectavam as suas sombras cónicas até ao limite da colina além ao fundo. Eurípedes não se importava de esperar tanto tempo pela carreira. Era uma das poucas coisas que não se importava de fazer. Mas tinha de ser aqui. Nesta espécie de paralelipípedo. De chapa ondulada. Pintada de verde. Sem um dos lados. Com uma tábua de madeira de topo a topo. Gostava de ouvir o canto dos pássaros e tentar adivinhar espécies. Com uma margem de erro que ele próprio traçava antes de dar início oficial ao desafio. Que era quase sempre de um em dez. Tão esparsos eram os carros que por aqui passavam que, conforme o vento, era até possível ouvir, de hora em hora, o sino da aldeia mais próxima. Que estava muito longe. E era a sua. Tudo isto o envolvia num tão morno manto de afecto que não poucas vezes dava o exemplo de como o mar, visão a que teve acesso apenas uma vez na vida, numa excursão da escola, não lhe inspirou especial encanto. Antes achou curioso como a areia da praia, que naquele longíquo dia gelava os pés descalços, estava mais quente por baixo. Cremilde, a sua namorada na altura e com quem esteve para casar até à véspera da boda, também achou o fenómeno interessante. Aos pés de Eurípedes está Fiel, o cão. Que o homem apresenta às pessoas como sendo Cão, o fiel. Está velho. Dormita e só abre os olhos quando o dono deixa cair uma beata para o chão. Faz pouco mais. Para além disso e de seguir, diariamente, o dono até este lugar. O autocarro passa. O homem, que o ouviu a aproximar-se, não se moveu. Depois, como que falando para o cão, disse É o que sai de Beja às 11h20. São horas de nos pormos a andar. E o animal, como que percebendo cada uma das palavras, ergueu-se tremulamente nas patas e combateu o reumático com um alongamento dos quartos dianteiros. Nos montes circundantes, ninguém sabe porque tem Eurípedes este ritual. Uns dizem que tudo se deve a Cremilde ter partido, na véspera do casório, na carreira da Mina de São Domingos para o Campo das Cebolas. Nunca mais deu sinais de vida. Os mais novos dizem só que o homem é maluco, inundando-o, jocosos, de copitos de vinho até ele tropeçar na língua. Nós só sabemos que um homem com um cão numa paragem entre duas araucárias e uma fiada de ciprestes é uma imagem bonita. E, para já, é o que interessa.
segunda-feira, novembro 07, 2011
sexta-feira, novembro 04, 2011
hELp tHe aGEd, diria Jarvis...
Rodovalha tentara, de toda a maneira, feitio e mais qualquer coisinha, livrar-se daquilo. Dezenas, centenas, depois milhares e finalmente milhões, garantia, sem temer exageros, a uma parcimoniosa audiência de idosos bafientos, esparsamente sentados pelas doze (12) mesas de fórmica do café/leitaria/snack-bar KaTeKero. Todos eles de boca aberta. Uns por admiração ou fascínio. Outros porque é assim que os velhos ficam quando se distraem. Maxilar inferior estendido ao infinito. Cachalótico prognatismo. Dois dentes por sujeito. Em média. Júlio, que cheirava às laranjas que descascava, todos os dias, ao primeiro sinal da aurora, foi o único que assumiu a sua ignorância. Puxando os óculos para a ponta do nariz, onde tinha uma pequena selva de pêlos negros e hirsutos, disse Mas que raio vem a ser um gorgulho? Rodovalha quedou-se, assim, de braços erguidos do gesto que usara para transmitir a noção, rodando apenas a cabeça em direcção ao extraterrestre que não sabia o que era, provavelmente, o insecto mais comum do planeta, logo a seguir aos militares. Não olhe assim para mim, minha senhora. É só uma pergunta. Não responda se não quiser, que eu oiço a história à mesma. É o que faço com o meu médico da Caixa, disse o engelhado humano. Risada. à excepção dos moucos. Rodovalha pensou Sacana do velho. Só para tirar esse cheiro a cânfora precisavas de três banhos de creolina. E essa caspa nos ombros dava para polvilhar uma fornada de pastéis de Tentúgal, mas disse apenas Meu caro amigo... o gorgulho é um bicho que vai às leguminosas secas, ao arroz, às sêmolas. O antigo acenou negativamente. E a obsoleta entre os dois mexia deseperadamente no aparelho auditivo franzindo, mais ainda, as feições. Tenho a casa cheia daquilo, gente. Maria Antónia, a alcoviteira, que cheirava a naftalina, raspou mais uma vez o interior do pastel de nata com a colher do carioca de limão, lambeu-a, deu uma ruidosa trinca na massa folhada e declarou, cuspindo grandes bocados em todas as direcções Se fossem baratas era pior. Rodovalha achou que não. Porque ninguém sequer imaginava o que era abrir a porta da despensa e ouvir a sinfonia de bocas a roer. Uma espécie de bulício sem fragor. Um permanente burburinho. Irritante. Foi o que ouvira ainda antes de dar conta da infestação. E pensou estar louca. Hipótese que nunca antes havia colocado. Ao contrário de quase toda a gente. Clotilde, que cheirava a gatos e tinha sido, nos longínquos anos quarenta, o mulherão de Lisboa, frequentadora de casas de fado, cabarets e bares do Cais do Sodré, solícita prestadora de serviços mais íntimos e vendedora de limões na Rocha Conde d'Óbidos, propôs Eu tenho lá um pó que me deu conta das baratas, traças e assim. Rodovalha pensou Eu envenenava-te era a ti, minha porca, que és a vergonha do bairro, mas disse apenas Não é preciso, Dona Clotilde, muito obrigada. Uma cadeira arrastou, no extremo da sala, rugindo no chão de lajes moiras. Todos os olhos se dirigiram para ali. Os surdos também. Por causa da vibração no chão. Metes tudo no congelador, grão, feijão, arroz e massas. Depois demolhas que a bicheza flutua toda. E tu é que és a vergonha do bairro e não vais envenenar ninguém, disse Alda, que cheirava a perfume de drogaria e, dizia-se, lia pensamentos.
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