segunda-feira, outubro 31, 2011

TraVeL wRiTinG 4 duMMieS

Deodato sentou-se. Esculpindo um baixo-relevo de duas nádegas na fina areia da praia do Almoxarife. Em seu redor, um sem-fim de caravelas portuguesas. Que ficaram da última preia-mar. Dezenas de pontos púrpura como que a cromatizar o areal cinzentão. À esquerda a Ponta da Espalamaca. À direita, a Horta. Paragem obrigatória de mareantes mais aventureiros e menos românticos de todo o mundo. Tristemente igorado por tantos portugueses. Fascinados pelo exotismo. Ignorantes de assombro. Em frente, o Senhor Imenso. Majestoso Pico. O costumeiro anel de nuvens em torno do cume. Um Kilimanjaro mais marujo. Apagou o cigarro Além Mar. No resto da cerveja Especial que deixara, propositadamente, no fundo da garrafa. E voltou a admirar a velocidade a que a sombra escalava, pela encosta direita, vulcão acima. Daí até à noite cobrir a tudo e a todos à excepção do Piquinho, derradeira ponta rosa antes das trevas, pensou apenas em como este lugar, mágico e único, poderia ser o mais belo do mundo. Ergueu-se e mirou, mais uma vez, o Canal. Para reparar num vasto dorso que, lá longe, apareceu. Reconheceu a espécie pela expiração do espiráculo. Foram anos de artes beleeiras a ganhar manhas que não se perdem numa vintena de interdição. Era uma baleia-de-Bryde. Uma das que nunca se atrevera a arpoar. Mesmo nos seus tempos mais intrépidos. Ficara-se sempre pelos cachalotes. Que já davam trabalho sobejo. Perante tal visão, tão habitual como enlevada, Deodato pensou que, definitivamente, não haveria lugar mais maravilhoso. Acreditava mesmo que o Espírito Santo, ele próprio, pousara aqui a imensa mão. Num dia mais inspirado. Mas foi já a subir as escadas de lava tosca, ao colocar a mui católica e pouco cristã hipótese de não haver paraíso sem senão, que a terra tremeu.








segunda-feira, outubro 24, 2011

MoNKey GirL

A miúda do macaco gostava de caras de bacalhau com todos. O macaco da miúda gostava de festas no queixo. Quando alguém diz algo que não deve devia dizer algo para que o outro algo diga. O silêncio é a mais condenadora das interjeições mudas, disse ela um dia. True, respondeu o símio, que era erudito e falava línguas. Isso não é uma interjeição. Um "groumpf" ou um "bah" tinham sido mais assertivos, mas dada a constituição monossilábica da palavra vou considerá-lo como tal, intervencionou ela. Also true, prosseguiu o primata. I think we should stop seeing each other, ironizou a humana. Fuck you biátch, crunhiu o bicho. Ela cortou o ovo cozido ao meio, espetou o garfo numa das metades, depois num bocado de cenoura e ainda num pouco do lábio do bacalhau e, enquanto mastigava, fez planos para molhar um pouco de papo-seco no azeite que ficaria no prato quando só as espinhas restassem. Esse, ao menos, pareceu-lhe um projecto exequível. 


quinta-feira, outubro 20, 2011

GrOunD cOntrOl tO mAncEbo dIAZ

Lígia acordou em sobressalto sem que o despertador tocasse mas já depois de o ter desligado três vezes, ao mesmo tempo em que, na outra ponta da cidade, Lúcia quase dava por terminado o serviço de limpeza na empresa que contratara a sua prestação de serviços, não fora a embalagem de limpa-vidros que derramara sobre o portátil aberto na secretária do Director Geral.


Eduardo estava prestes a servir uma meia de leite escura e uma torrada aparada à Dona Eládia quando ouviu o seu telemóvel tocar na copa, no preciso momento em que Esmeralda, numa cidade não muito longe memorizava, em frente à televisão e de comando do velhinho leitor VHS na mão, os diálogos de um filme.


Gonçalo rodava, sem sucesso e pela sétima vez, a chave na ignição, tentando ignorar o cheiro a gasolina e o olhar jocoso dos transeuntes da Av. das Forças Armadas, enquanto duas transversais ao lado Gina atingia o seu orgasmo de obrigação contra o peito sem pêlos nem amplitude do namorado que cheirava sempre, mesmo depois do banho, a loja chinesa.


Piedade acenava ao autocarro a transbordar, pressagiando o insucesso do gesto e gritando, antecipadamente, Filho da puta ao motorista que, podia jurar, trazia um sorriso travesso na cara sulcada de sol filtrado a pára-brisas, coincidindo tudo isto com o salto que Pedro dá, alguns metros de profundidade abaixo, para a linha, segundos antes do metro direcção Pontinha entrar na estação.


Amir ignora, ao passar na Rua da Amendoeira, o violento embate no seu ombro de uma bola que, todos os dias, os putos do bairro chutam na tentativa de derrubar o turbante no exacto segundo em que, no outro lado do Mundo, um Director de Linha de Produção, chamado António, dorme o sono dos justos depois de, pela terceira vez em apenas um ano, ter mandado trezentos e cinquenta trabalhadores de uma exploração de óleo de palma para casa.


Eduardo atendeu o telefone e disse Sim, amor, estou a trabalhar, o que foi? ao mesmo tempo que Lígia entrou, à pressa, para o duche.


António acordou sentindo um calafrio a correr a espinal medula no sentido ascendente e reparou que tinha as palmas das mãos completamente suadas no preciso momento em que Gina olha para o namorado, passa a língua nos lábios e diz Estou grávida!


Gonçalo consegue finalmente que o velhinho Peugeot 205 Lacoste pegue e grita Yahooo! Jean Jacques, eu sabia que não me ias falhar enquanto Lúcia se desdobra em mil e uma desculpas perante o Senhor Director que acabou de entrar no gabinete.


Piedade decide esticar o polegar e parte um salto no exacto segundo em que Esmeralda conclui que já sabe de cor a deixa pretendida porque já é a décima vez que a recita sem qualquer inexatidão.


Pedro não sente o embate do metro porque morre de uma electrocussão coincidente com o momento em que o agente do SEF, mastigando pastilha elástica, ergue a mão, olha Amir nos olhos e ordena, sem antes desejar um bom dia ou dizer Salam Malaekum, Passaporte, fáxabôr!


Esmeralda pega no telemóvel e liga, com uma lágrima num dos olhos mas sem ranho no nariz a confirmar qualquer tristeza, para o namorado.


Lígia repara no fio de sangue que lhe escorre pelas pernas. Chora!


Eduardo ouve, do outro lado da linha, This is a story of boy meets girl. The boy, Tom Hansen of Margate, New Jersey, grew up believing that he'd never truly be happy until the day he met the one. This belief stemmed from early exposure to sad British pop music and a total mis-reading of the movie 'The Graduate'. The girl, Summer Finn of Shinnecock, Michigan, did not share this belief. Since the disintegration of her parent's marriage she'd only love two things. The first was her long dark hair. The second was how easily she could cut it off and not feel a thing. Tom meets Summer on January 8th. He knows almost immediately she is who he has been searching for. This is a story of boy meets girl, but you should know upfront, this is not a love story e conclui, pela conversa da véspera, depois do visionamento do filme "500 Days Of Summer", que a namorada está a acabar tudo com ele.


Gonçalo repara que a sua namorada de liceu, mais magra, gira e sem borbulhas, está à beira da rua a pedir boleia. Sem perceber porquê, vem-lhe à cabeça, pela primeira vez desde que foi proferida, há mais de dois meses, a frase Tem cuidado que eu estou saída! 


Lúcia fica espantada com o sorriso benevolente do homem que tanto medo lhe inspirava até agora, enquanto ouve Não faz mal. Compro outro. Que tudo fosse assim tão simples.


Gina suspira, inspira outra vez e prende o fôlego para dizer Mas não é teu.


Piedade vê que o seu ex-namorado de liceu, mais gordo e desleixado, pára para lhe dar boleia para o trabalho, diz-lhe Que surpresa! Estás diferente! mas pensa E foi este estafermo o único que deixei vir-me ao cu.


António teme que o pressentimento tenha a ver com a gravidez da mulher.


Pedro fica confuso porque não sabe se deve caminhar para a luz ou afastar-se dela, como dizia a pequenota do filme "Poltergeist", que vira há muitos anos no Cinema Condes com a mãe, Lúcia, que queria levá-lo a ver o "Ghostbusters" mas enganou-se porque não percebia muito do assunto e só o queria fazer feliz.


Amir suplica, enquanto é algemado e durante todo o trajecto para extradição, para que liguem para o filho, que é Director Geral numa empresa de renome, sabendo contudo que os separam algumas décadas de silêncio depois de palavras amargas proferidas numa ceia de Ramadão.


Dona Eládia ergue, lá ao fundo da sala, a mão direita meia de leite escura e a torrada aparada, caralho?



































quinta-feira, outubro 13, 2011

FiCçãO dE bOmBaZinA

O tilintar dos talheres em loiça e vice-versa.

Josineide olhava com estranheza, estampada no rosto moreno, pueril e delicado, para a mesa em frente. Um operário, de fato-macaco e pontas dos dedos tingidas de negro em cada linha da impressão digital, comia uma espécie de pequeno disco amarelo. Mordia-lhe a ponta. Apertava. Libertando o interior numa suave projecção para o fundo da boca. Depositava a casca num pires. Acompanhava o belisquetchí com um chôpe gelado. O que provava que era bom. Mas exótico. 

Josineide, Agostinho da parte do pai, Dorivaldo, e Almeida da parte da mãe, Benvinda, que a parira de cócoras, agarrando-se à vida e a sonhos por concretizar e às grades dos pés da cama, chegara a Portugal há pouco mais de dois meses. Vinda de um lugar mais quente, com música na rua e onde chôpe vai com castanha de cajú frita em pimenta. Ou açúcar. 

Carlos, sentado ao seu lado, fita-a, segue o tracejado da direcção do seu olhar e diz, monocórdico, com a habitual voz de castrado mas sem o ser, como ela comprovara da pior maneira, da que dói e dá nojo e faz tomar dez duches e o cheiro não sai Não devias olhar dessa maneira. Parece que vens de Marte ou assim. Que nunca viste pessoas. Ela rodou a cabeça pela primeira vez nos últimos sete minutos e mirou a pobre amostra de homem, a quem oferecera, em segredo entre colegas, a alcunha de Mico Saguí Não vejo mesmo..., declarou. O Anão de Circo, como lhe chamava Kleide, a mais antiga da casa, elevou as sobrancelhas até quase ficarem escondidas por trás do cabelo negro e hirsuto Como não? Tens dos trabalhos mais sociáveis que há. És um Front Desk, pá. Um Customer Care com uma lista de Key Accounts, e sorriu tão maliciosamente quanto o bigode de vinte anos sem cuidados o permitia perceber. Está me xingando? Está pensando que eu sou o quê? Tua vovó? Tenho grades nas janelas que nem favelado, como todo o dia o que dão para mim, a veneziana não abre nem por o Natal e a única visita que tenho sem ser cliente é a cabra da peste da esteticista que vem depilar minha xereca, quase gritou sussurrando, se é que isso é possível, porque foi, de facto, um sussurro, isso garante-se, mas cravando as unhas de gel no tampo da mesa, cerrando os dentes com a força de um pittbull e projectando um ou dois gafanhotos para a cara do chulo. Esse gozava o prato São mordomias que a maior parte das portuguesas dariam o cu e dez tostões de real para ter. Ao menos não levas nos cornos quando o Benfica perde. Ou porque sim. Ela vira novamente a cara na direcção do pequeno prato de frutinha amarela, exalando um Não enche o saco, não faz ameaça, não vem de garfo que hoje é dia de sopa, vai tomar no cu e vai ter com a tua turma em apenas um suspiro. 

Carlos levanta-se.

Josineide Almeida Agostinho encolhe-se por instinto.

Vou mijar, diz ele. Ela ergue o olhar, sorri e diz, desta vez para que todo o estabelecimento oiça Vai. E puxa a pelinha para trás, que tá parecendo pescoço de galinha. E deve ter estado fora da geladeira, porque também está fedendo. Agora é ele que serra os dentes. Poucos. Não te queixaste, puta, diz. E podia?, continua ela, de sorriso rasgado por saber ter irritado o Pequeno Macaco, como lhe chama Maria Aparecida, a menina do quarto 100 que todos os clientes acham que tem 18. Mas tem 12.

O homem da mesa em frente ergue, finalmente, os olhos do jornal Chamam-se tremoços. És servida? Ela fita-o, sorri, pisca duas vezes os olhos e responde Oi?