quarta-feira, setembro 14, 2011

oS cAmPoS AzÍaGOs

Manfredo Malapata parou o carro na berma da nacional número indefinido. Saiu. Montado adentro trouxe, na volta, um ramo de flores silvestres. Estendeu-o a Miriam Meireles, que respondeu, friamente, Sabes bem que sou alérgica. Distância disso, por favor. Reiniciada a marcha, bastaram quinze minutos e alguns segundos para que a estrada rasgasse uma aparentemente interminável planície coberta de trigo. Manfredo voltou a imobilizar a viatura e só depois propôs Vamos andar ali no meio. Será bonito. Miriam virou a cabeça, encostou o queixo ao peito e baixou os óculos escuros, para que ele lhe visse o seu melhor olhar reprovador Sabes a quantidade de bichos que deve haver para ali? Para além disso, este é o meu melhor vestido. Continua a guiar senão nunca mais lá chegamos. Odeio chegar atrasada. Ele pisou o acelerador. Mas ainda fez a derradeira tentativa, poucos quilómetros à frente, quando atravessavam uma serra que, no sentido descendente, revelava o imenso mar. Voltou a imobilizar o carro, desta feita num miradouro. Ela levanta a voz Maaaauuuu, nem penses! E o meu medo de alturas? Parece que não me conheces! Ele desiste. Conduz por instinto, sem pensar. Ignora, sequer, a beleza da densa floresta que, agora, lhes passa por fora. Tenta aceitar a má sorte que lhe calhou em vida. Ou a má vida que lhe calhou em sorte. Chegar ao destino o mais rápido possível. Como ela lhe pedira. Estavam finalmente de acordo. Menos mal. Pára aqui, pede-lhe ela, abrindo a porta. Volto já. Há papel higiénico?



terça-feira, setembro 13, 2011

CiGaREtte ciGareTTe S'iL vOUs pLaiT

Quantos cigarros são precisos para morrer? perguntou Oskar Schindlerhosen a Marlene Dietrischenbower. O amor da sua vida. Deitada a seu lado. Sobre os lençóis ensopados. E a quem escorria uma minúscula gota de suor da base dos seios à primeira prega da barriga. A medida exacta é metade dos que fumaste desde o início da manhã, respondeu-lhe. Com um cândido sorriso nos lábios. Também Oskar sorriu. E pigarreou. Depois tossiu. E cuspiu uma enorme posta de sangue para o balde de cinco litros ao lado da cama pousado sobre o tapete de Regensburg que é tipo a Arraiolos de lá...











segunda-feira, setembro 12, 2011

oS pOnToS CuLateRaiS

Macário dava para os dois lados. Entre a esquerda ou a direita, o Norte ou o Sul e, dependendo da direcção para onde estava virado, o lés-nordeste ou o oés-sudoeste, tanto se lhe dava como se lhe deu, com força, no cu!


quarta-feira, setembro 07, 2011

FaTso & tHe biTch


Vital era baixo. Atarracado é a palavra. Pequeno. E largo. Gordo. Mas bonito. Tão bonito que as feições, delicadíssimas, faziam com que se parecesse uma mulher. Ideia a que assistia o facto de ter mamas. Uns enormes e voluptuosos seios de massa adiposa. Descaídos, mas seios. De auréolos enormes e escuros. Como as grávidas. O ventre, volumoso, redondo. Um dia, decidiu que não tinha mais nada a perder. Pelo menos, mais do que perdera a vida toda. Que, ao que este pequeno conto interessa, era tudo. Alguém que lhe passasse a mão pelo cabelo, mesmo quando este estava oleoso do terceiro dia sem banho. A oportunidade de ser amado. Um beijo no peito. Mamalhudo, mas com pêlos. Uma carícia na mão. Uma trincadela no lóbulo da orelha. Uma lambidela longa e sincera no minúsculo escroto. A abrigar dois diminutos testículos. É uma questão de escala. Foder. E foi. Bom. Pagou. Se não fosse assim, nunca saberia como era, confessou. De coração aberto. Como os outros fazem ao objecto do amor de uma vida. Que só vem uma vez. Uma só. Ela deitada sobre o seu peito. A desenhar gatafunhos com a ponta do indicador em torno do umbigo saído. Ele com uma madeixa dos seus cabelos no queixo. Uma comichão horrível. Mas devia ser assim com os outros também. Coisas que, não fora o contexto, incomodariam. Ela diz, baixinho E os outros? Quantos jantares, concertos, teatros e sessões de cinema não têm de pagar até chegar a isto? E sem garantias de qualidade. Foi assim que Vital, o Gordo, passou a ser conhecido como Vital, o Gordo Putanheiro. Mas a Altivez foi uma amiga com quem andou, a partir dali, de mãos dadas. E que finos e delicados dedos tinha, a puta!


segunda-feira, setembro 05, 2011

uM miNUto de silÊNcio e tUDo o qUe vEio anTES d'ELE

Zilda Zuleica olhava o céu-da-boca do Mundo. Deitada de costas. Um cigarro na mão direita pousada sobre o peito. Ignorando a torre de cinza prestes a ruir. A esquerda sobre a barriga. Pedira o velho barco insuflável ao irmão mais velho. O kit de remendos para pneus do irmão mais novo. Que afinal não fora preciso. Deixou que a luz do fim de tarde inundasse de sombras o estreito Zêzere. Empurrou o frágil bote a partir da margem. Consigo dentro. Um remo de plástico. Um livro. "Conversas com Deus". Acho. Não consigo ver daqui. Um maço de cigarros. O silêncio só não era absoluto por compreender: 1. O meigo chapinhar, 2. O pio de um guarda-rios, 3. O canto de muitos pintassilgos, 4. O despique de um rouxinol, 5. A estridência de uma só cigarra, 5. a) O estertor de milhares de gafanhotos. De resto, tudo aquilo causava uma espécie de hipnotismo. Letargia. Indolência. Mais isto de olhar para cima e ver as nuvens a assumir as formas que cada um imagina. Como nos filmes que acabam bem. Não gosto. Eu. Ela não sei. Nunca lhe perguntei. Happy endings são uma estalada de inverosimilhança, disse a alguém. Um dia. Eu não estava lá. Mas ouvi este Tanto tempo a ver a tua cara em tudo e agora não há uma só nuvem onde possa reconhecer um bocado da tua boca... que lhe sai agora, num sussurro. Já os morcegos se amotinam sobre as águas quando torna. Já a coruja pia quando entra no carro. Já não consegue parar de chorar quando deixa cair a testa no volante. A buzina dispara. E, lá fora, por momentos, tudo é quietude. Silêncio, pois. Absoluto. Agora sim.