segunda-feira, novembro 30, 2009

Un jour

Um dia vou onde a neve cai e trago-a, intacta, para que a sintas na ponta dos dedos, pequeninos. Um dia vou poder segredar-te ao ouvido, para que fique entre nós, Estão a nascer-te asas nas costas para que possas voar. Um dia vou deixar de sentir borboletas no peito só porque sorriste. Um dia vou levar-te à floresta sem achar que a tua voz, entrecortando os corvos e os cucos, faz dela um lugar melhor. Um dia vou deixar de te beijar na boca. Um dia vou ter certeza de que não tens uma missão. Um dia vou sentir algo tão intenso como os teus abraços. Um dia vou deixar de achar que, a cada piscar de olhos, consigo ouvir as tuas pestanas a fazer flap. Um dia vou deixar de me rir de cada vez que te vejo de roupão. Um dia vou poder viajar sem que me apertem o coração até que o ar me falte. Um dia vou achar que tens mau hálito matinal. Um dia dir-te-ei, sem temor, que me assustava a ideia de ser pai e, agora, sinto-me maior do que os Homens. Por isso, um dia, não vou plantar uma árvore ou escrever um livro. Porque o faria?

quinta-feira, novembro 26, 2009

Suponho que haja um destes a cada década

Quando parece que o género está esgotado, sopra a suave e benfazeja brisa que abana a vulgaridade e nos faz acreditar que, afinal, o clássico Filme Boy Meets Girl é, porventura, intemporal. Tem-se, por Filme Boy Meets Girl, aquele em que, lá está, ELE conhece-A | ELE e ELA vivem momentos de felicidade que podem assumir as mais diversas formas | ELE e ELA zangam-se | ELE e ELA reatam | ELE e ELA vivem felizes para sempre OU ELE e ELA nunca mais se vêem. Entretanto, esboçam os espectadores uns sorrisos, ou riem, ou disfarçam uma lágrima. Não há, NUNCA, nada de novo. A não ser, como implícito no título deste devaneio, uma vez em cada década. Na de 60, o Dustin Hoffman batia, desesperado, às portas da igreja onde o amor da sua vida, que por acaso até era filha da gaja que lhe deu o sexo da sua vida (God Bless You Please, Mrs Robinson, pediram Paul Simon e o Cabelo-Ridículo Garfunkel, a altos berros, no Central Park), estava a ponto de se casar com outro qualquer, que até tinha menos nariz e mais 20 centímetros que o actor em questão. Em 1979, o mesmo pequenote acabava com o mito de que as mães é que cuidam dos filhos, até porque a Merryl Streep estava louca e não tinha condições para fazer do herdeirozinho Kramer um moçoilo feliz. Nos eighties, os Phsycadelic Furs fizeram a música para o intemporal Pretty In Pink e, nos 90 (em 2000, vá), o Almost Famous relembrou a uma geração que já definhava, de Grungísse, que o Amor era possível no tempo dos Led Zeppelin. Estes foram Primus Inter Pares. Porque, por outro lado, também houve o Oficial e Cavalheiro, o Shakespeare In Love, o Lagoa Azul, o Cidade dos Anjos, o Moulin Rouge, e os concorrentes na categoria de Absolutamente Ridículo Guarda-Costas e Titanic. Mas, por dEUZ, a lamechice viscosa, o mel barato de todos estes perigou o género. E cinema é como a música. Só há o bom e o mau! O que nos leva à presente década. E, até agora, digno de nota só há um. Porque a tal nota de que é digno não cabe num caderno inteiro. Porque o filme começa com um aviso aos mais incautos: This is a story of boy meets girl. The boy, Tom Hanson of Margate, New Jersey, grew up believing that he'd never truly be happy until the day he met "the one." This belief stemmed from early exposure to sad British pop music and a total misreading of the movie 'The Graduate'. The girl, Summer Finn of Chennicok, Michigan, did not share this belief. Since the disintegration of her parents' marriage, she'd only loved two things: The first was her long, dark hair. The second was how easily she could cut it off, and feel nothing. Tom meets Summer on January eighth. He knows, almost immediately, she is who he's been searching for. This IS a story of boy meets girl, but you should know upfront... This is NOT a love story.
E entra a Regina Spektor com o seu Us... o que, para muitos, poderá não ser tanto quanto é para mim! Só faltava que as primeiras palavras entre ambos fossem trocadas porque ele vai a ouvir o There Is A Light That Never Goes Out, dos The Smiths, no elevador. Pois! Ou que os habituais fragmentos de vida feliz em comum, com todas as pequenas idiotices, gestos, sorrisos e beijos, abraços e desencontros, encontros e desventuras, enlaces e frases que ditam viragens, não passassem por alguns flashbacks, um deles em que ela, num trabalho da escola, transcreve os Belle & Sebastian, no The Boy With The Arab Strap, com um avassalador Colour my life with the chaos of trouble. Até a corriqueira cena de sexo é substituída por uma Morning After em que ele, no trajecto para o trabalho, leva a cabo as mais variadas e perfeitas cenas de coreografia com a multidão, ao jeito de um musical barato. Até o seu emprego, de desenhador de postais de Aniversário e S. Valentim e Feliz Casamento e Pêsames quando, afinal, é arquitecto. Até quando ele lhe faz a tatuagem. Até eu, que sou avesso a estas pitchupitchuzisses, acho que, até agora, o 500 Years of Summer é o Filme Boy Meets Girl da década.

terça-feira, novembro 24, 2009

After All, it's Even WORSE

Ouvi hoje, pelo televisor do café, enquanto penicava um rissolito de leitão, que parece ser a grande novidade de 2009 nessa que julgávamos ser a já completa lista de Salgados à Portuguesa que, na Bélgica, esse já de si cinzento país, um homem que se pensava estar em coma há 23 anos estava, afinal, e tão somente, paralizado. Revelou, agora, faculdade de comunicar recuperada, que ficou consciente logo após o acidente automóvel que resultou em tal sina, mas incapaz de mover, sequer, um dedo (ao contrário do similar caso hitchcockiano). Ouviu tudo e de quase tudo se recorda. 23 anos de notas mentais, impossibilitado de escrever no seu moleskine. Que imagino tenham sido coisas como "O Mickael Jackson come crianças. LEMBRETE: Não fazer dele um mito depois de morto" ou "A Madonna diz que o Sean Penn lhe dá nos cornos. LEMBRETE: Haja um sacana que a trate bem, mas só para depois, aquando do divórcio, conseguir sacar-lhe 50 milhões" ou "Estalou um caso de pedofilia aqui na Bélgica, mas todos sabem que somos malucos. LEMBRETE: Isto devia ser coisa para calhar a um país de mais Brandos Costumes" ou "Estou farto de escrever anúncios em jornais para sacar gajas. LEMBRETE: Inventar uma coisa que dê para usar no meu ZX Spectrum e que não tenha que sair de casa. BOA, vou-lhe chamar HI5" ou "Olha, o Muro de Berlim caiu! LEMBRETE: Beber uma Coca Cola numa esplanada de Hohenschönhausen" ou "Acho que deixei 350 Francos Belgas nas calças de ganga elásticas. LEMBRETE: Ir ao banco trocar por €" ou "Vou apostar com a minha mãe que, não importa o tempo que eu esteja paralizado, o Sporting vai ganhar, no MÁXIMO, dois campeonatos".

segunda-feira, novembro 16, 2009

Let ME fucken BE + O início de um Potencial Romance...

Arquimedes era, aparte o invulgar nome, a que os pais se viram obrigados pela Conservatória de Registos Centrais, já que Outubrino não era permitido e Deus só o era com a preposição "de", um homem absolutamente normal. Talvez os ombros fossem um pouco mais largos que o costume, o que até lhe ficava bem, e as longas pestanas também lhe valeram alguns dissabores em novo, como ser confundido com uma menina ou, já entradote, ouvir vezes sem conta a pergunta Pintas os olhos? que ocorria sempre numa longa mesa de um jantar qualquer no preciso momento em que toda a gente tinha feito silêncio porque o bacalhau à bras daquele feito com batata palha da Titi estava a ser servido. De resto era, pois, normalinho. Bem, havia também aquele sinal no pescoço que fazia lembrar um escaravelho da batata tatuado em tons de bordeaux e o facto de vomitar quando a canja não tinha hortelã nem limão. Fora isso era aquilo a que as pessoas gostam de chamar normaleco. Ah, e era intolerante à lactose, o que lhe trazia incómodos de cada vez que queria impressionar uma miúda no restaurante, pedindo, com ar de profundo conhecedor, um queijo 100% ovelha de meia-cura com cardo da região de Serpa, a cuja ingestão se seguia um indisfarçável ataque de urticária pelo corpo todo, como se todos os mosquitos dos arrozais de Alcácer tivessem organizado uma apresentação da Bimby numa sala qualquer do seu corpo com bolachinhas da Cuétara e chá de limão sobre a mesa de apoio. À excepção de tal, era um homem comum. Embora houvesse, também, aquela incapacidade em desviar olhos de decotes, mesmo quando eram os das destinatárias das conversas, em disfarçar arrotos, em conter flatulência, em evitar fungar o muco nasal para de seguida engolir, perante os estupefactos olhares em direcção da sua maçã de Adão, como que confirmando aquilo que, há um segundo atrás, pensaram nos seguintes moldes Ele não vai fazer AQUILO, pois não?

Não havia dia em que não pensasse em tudo isto, ciente que estava dos seus próprios defeitos, incluindo um pénis diminuto e por circuncidar há mais de três décadas.

Então por que raio é que a sua vida, na forma de meandros e segredos, sem os quais a própria não existe poderia ter tanto interesse para outros?

quinta-feira, novembro 05, 2009

O Retrato-Nariz-Capote, uma saga em homenagem a Nikolai Gógol OU Conto Fantástico Para Rapazolas

Dimitri não era nem baixo nem alto nem magro nem gordo nem bonito nem feio ou, em suma, era um tiozinho* normal, à excepção do facto de ser pintor. Acordou, naquele dia, em sobressalto, olhando uma outra vez para o retrato a óleo que tinha, na véspera, comprado no mercado da ilha Vassilievski. E, para seu espanto, aquela espécie de ancião em trajes asiáticos, o retratado, continuava, como quando adormecera, arrepiado de medo e frio, fixando em si aquele olhar penetrante, que o perseguia para onde quer que seguisse, ou fugisse, que era o caso desde o minuto em que o pendurara na parede. Soergueu-se e esfregou os olhos, certificando-se de que não estaria, porventura, ainda a dormir. Mas as remelas que rolavam, por debaixo dos dedos contra as pálpebras, eram demasiado reais. Reabriu-os e não teve outro remédio que não correr para a casa de banho, a partir da qual um biombo implicitaria tão demoníaca visão. Apoiou-se no pequeno lavatório e voltou a cerrar as pálpebras, esperando que o coração, por ora feito puro-sangue em corrida de fim-de-semana, obrigasse a respiração a estugar passo. Quando o fez, porém, foi para dar de caras com a mais invulgar visão. No diminuto espelho que pendia, juntamente com a lâmina de barbear, do pequeno prego da parede, viu que algo se ausentava do seu rosto. Não lhe concedia inexpressividade e, por isso, não tinha a ver com as sobrancelhas. As suíças** lá estavam, cuidadosamente aparadas pelo barbeiro de Okhta. É então que, boquiaberto, prova irrefutável de que a boca e os lábios também ali se quedavam, se depara com a completa ausência de nariz. O seu pequeno apêndice afilado, que tantas vezes lhe valera alguns galanteios por parte de senhoras da alta sociedade moscovita, desaparecera, por completo, para nem fossas nazais ou sequer narinas restarem. Certificou-se, primeiro, de que conseguia mesmo respirar e, ao topar que o conseguia fazer pela boca, precipitou-se, com cuidado para não rever, nem de soslaio, o fantasmagórico retrato, em direcção ao seu capote***. Era urgente que saísse em busca do seu pequeno tesouro que, ali, bem no centro do rosto e, afinal, concluía agora, porque nunca o havia considerado antes, tanta falta fazia. "Mas que invulgaridade, por S. Jorge dilacerando o Dragão", pensou. Por outro lado, não poderia ser visto em público nestes tratos. Subiria, tanto pior, as golas do seu capote coçado até mais nada para além dos olhos estarem à vista. Mas, infelizmente, tal gesto apenas serviu para que outro assombro se apoderassse de si. No cabide por trás da porta de entrada do frio apartamento, havia, apenas, a total ausência da peça de indumentária pretendida, e que tanto abrigo dos gélidos ventos da Tundra, que assolam a cidade de Outubro a Março, lhe concedera. Só podia estar a sonhar. E desta vez nada tinha a ver, infelizmente, com a filha do vendedor do mercado de Chukine Dvor, reflectindo a luz do sol nos seus olhos claros, escondida por trás do tabuleiro repleto de sapatos. Julgando estar numa gravura lubok ilustrando o conto popular Miliktrissa Kirbitievna, deixou-se cair para trás, apoiando-se na parede. Tentou lembrar-se da noite anterior, se o vodka de terras finlandesas lhe entorpecera os sentidos, se o goulash da mulher do proprietário da taberna, húngara feita cozinheira com pretenções a ucraniana estaria com excesso de paprika picante, se sentira frio no regresso a casa, sinal de que o agasalho ainda lá estaria, caído sobre a mesa. É então que ouve três fortes pancadas na porta. Só poderia ser Nikita, o miúdo que lhe tratava, esporadicamente, das limpezas do estúdio e que ele observava, de sorriso divertido, a cada tentativa de arrumação de restos de telas, molduras por montar, estudos em papel, pincéis, óleos e terebintina. "Quem é?", perguntou, enfiando o roupão. "Sou eu, patrão. Nikita!", respondeu a pueril voz. Dimitri roda a chave exclamando "Mas, tiozinho, não é dia de varridelas" e abriu a porta para ver que, do penúltimo degrau, a criança lhe esticava o seu vestimado agasalho. Nikita, esse, não conseguia disfarçar o espanto, apontando o olhar bem para o centro da cara do amo. Muito baixinho, exclamou, depois de pigarrear "E acho que, no bolso esquerdo, encontrará algo que lhe pertence..."!

* "Tiozinho" era, na Rússia do Séc. XIX e, principalmente, em S. Petersburgo, a forma mais popular de tratamento numa conversação.

** Na Rússia, as patilhas e, principalmente, as suíças, eram consideradas sinal de elevado estatuto social.

*** Peça de roupa essencial contra o frio de S. Petersburgo.

segunda-feira, novembro 02, 2009

Efeméride n.º 7

Passou por mim o fenómeno da rádio-pirata como aquelas rabanadas de vento que nem despenteiam. Até porque, in those days, era o gel. E a grande sensação desse tal universo, que levava grupos de malta para dentro dos carros dos pais em busca desenfreada, à mão, claro, dos últimos hits era, à semelhança do que ouvia eu da boca dos miúdos mais velhos lá da rua, enquanto vibrava com o meu Citröen CX Pallas da Majorette (os carrinhos da Matchbox não tinham suspensão), a Rádio Cidade. E essa, conclui-se hoje, devia ter sido logo extinta, responsável que foi por uma cultura musical portuguesa ao nível dos valores obtidos em testes de astrofísica num bando de avestruzes do Kalahari. Passei, assim, muito bem sem a rádio, os Rapazes Selvagens dos Duran Duran, a outra que, razões explicadas na sequência inicial do Cães Danados, sentia-se Como Uma Virgem, o Billy Jean do Qual é Coisa Qual é Ela Que Antes de Morrer Já o Estava, a Contagem Final do Franjinhas Maquilhado e qualquer coisa que a Trina Trana cantasse. Tinha, na única prateleira do meu quarto que NUNCA apanhava pó, herança da falida bôite Tropical em Santana, Sesimbra, propriedade de um amigo do meu pai, os vinis do Boy, War e Joshua Tree (mais precisamente, A Árvore de Joshua, com as letras d'As Mães dos Desaparecidos e do Onde as Ruas Não Têm Nome traduzidas), o Cairo dos Taxi na sua lata, um qualquer dos Talking Heads de cujo nome não me recordo, a colecção dos Pink Floyd até ao Momentary Lapse Of Reason, exclusivé, o I e o II dos Led Zeppelin, o Yellow Brick Road e o Ziggy Stardust and The Spiders From Mars, The Velvet Underground & Nico e o Transformer do Lou Reed com um desconcertante risco no Satellite of Love, o que me impediu de perder a virgindade ao som do mesmo, projecto que assumi com uma competência rara. Chegavam-me todos estes. Contando, claro, com os outros que me emprestavam, porque a cassete virgem BASF Chrome 90 minutos, que dava para um álbum de cada lado, estava sempre reservada para o que desse e viesse e os lápis-de-cor ao lado para uma capa de minha autoria. O valor deste produto era, contudo, de tal forma proibitivo que eu era, então, ainda mais selectivo do que sou hoje. Como desperdiçar tal objecto com A-Ha ou Kim Wilde quando, pouco depois, alguém de lábios carnudos, seios generosos, sempre vestida de preto e com sapatos Doc Martens e Ana Salazar, me empresta Cure e Bauhaus? Os The Smiths, esses, tiveram direito à reverência que incluía uma viagem, ao sábado de manhã, à Discoteca Roma com o Sr. Zé Dias a dar-me o equivalente ao total de lavagens do seu sempre brilhante Opel Corsa TR, porque não havia dinheiro para o GL. Nessa altura, era o Meat Is Murder que estava na montra. E ainda consegui, sacrificando o cerimonial pastel-de-massa-tenra do Frutalmeidas, que o dinheiro esticasse para o The Queen Is Dead, lá no meio da letra "S". Isso não é música de maricas? perguntava Zé dIAZ com um olhar preocupado, aconselhando, em vez daquilo, O outro daquele ceguinho que está sempre a dar na televisão, ao que eu respondia, de peito cheio, É música futurista, pai. Um ano depois, passou a chamar-se-lhe "Vanguarda" e incluía, também, os Depeche Mode e o Billy Idol (estroinice que continua, ainda, por explicar). Vivi assim, sem rádio, e assado, com calças elásticas a afligir erecções durante os slows dos Scorpions, banda de aliens que, com os Dire Straits e o Bruce Springsteen, estavam tão longe de mim como Marte. Até que um dia surgiu, mais ou menos ali em 91.6, a XFM, que não tinha publicidade e, logo, PUFF e depois a Voxx, que não tinha publicidade e logo BANFF e depois a Radar que não tinha publicidade e agora até METE NOJO e, no meio de todas estas descobertas, que incluíam um Hé pá, isto afinal a rádio tem uma ou outra coisa que até sim senhor descobri, não uma estação, mas uma voz que a determinada hora em determinados dias da semana nesta ou noutra estação escolhia, poucas vezes mal, pérolas que distribuía a porcos habituados a Beyoncés e Black Eyed Peas. António Sérgio abria a cabeça a quem abria o cu ao estrume que as rádios portuguesas debitam com a mesma irresponsabilidade com que uma professora de português diz aos seus alunos para lerem Margarida Rebelo Pinto, ou de um Padre que incute no rebanho o preconceito para com os muçulmanos. Eu, que nunca quis saber onde é que o Malato foi feliz porque era óbvio que isso incluía as Bandas Sonoras que escolhe para os seus programas, fiquei inúmeras vezes dentro do carro, em vez de entrar em casa, porque A Hora do Lobo ou o Viriato 25 já tinham começado e... podia, efectivamente, perder algo de Muito Bom, que era o que nos dava António Sérgio. E eu achava que ali, a gastar bateria e a aquecer os pulmões a fumo de Chesterfields ou Bula Fields DOP, a voz do Homem ficava bem antes da do Stuart Staples, depois da do Tom Barman, anunciando o novo dos Fleet Foxes, recordando o Trent Reznour dos bons tempos... e nós, que gostávamos tanto da sua companhia, com a chuva a bater contra as vidraças do carro, que ficava bem com This Mortal Coil ou Red House Painters, nunca pensámos que, no dia em que o António Sérgio morresse, a rádio portuguesa agonizaria. E, hoje à noite, serão menos os que sintonizarão a Radar. Porque, efectivamente, e doa a quem doer, vale bem menos a pena...